22 de jul. de 2009

Energia no Tapajós, para quem?

"A Eletronorte mostrou um documentário sobre o plano de construção de 5 hidroelétricas na bacia do rio Tapajós. A amostragem de uns 10 minutos foi feita na Câmara de vereadores de Itaituba. Quem viu aquilo e só aquilo deve ter saído maravilhado com o plano", escrever Edilberto Sena, padre diocesano e Coordenador da Rádio Rural AM de Santarém-PA, em artigo publicado por EcoDebate, 20-07-2009.
Fonte: UNISINOS

A hidroelétrica de São Luiz do Tapajós, segundo a Eletronorte, será construída, quase como a bíblia descreve a criação do mundo por Deus. Assim: sem destruição, sem impactos negativos, até escadinha para os peixes subirem e descerem o rio haverá. Imagine que ela diz que os trabalhadores não residirão na área de trabalho, mas cada dia serão transportados de helicóptero e barco para a cidade de Itaituba. Quem já viu como se faz uma barragem (aquela será para gerar ao menos 8.000 megawattz de energia, um paredão de 36 metros) pode imaginar que ao menos 10.000 e até 20.000 trabalhadores estarão envolvidos na obra, então…todo dia essa tropa será levada e trazida a Itaituba…

Hoje o governo federal já iniciou a construção da hidroelétrica de Jirau, lá em Rondônia. Aquela é um espelho para o povo de Santarém, Aveiro, Itaituba e da região da bacia oo Tapajós olhar e saber a história real do que será para a natureza e os povos que vivem na área da construção. Lá em Rondônia, mal começou o serviço, já 120 famílias foram expulsas de seus lotes. Apenas R$: 1.500,00 foi a indenização para cada um. Quem quis “ganhou”uma casinha na periferia de Porto Velho, mas não pode mais utilizar sua canoa, sua casa de farinha e nem colhrer alguma fruta do quintal.

Explicação da empreiteira para a miséria da indenização foi que eles não tinham documento de propriedade. O governo terceirizou a construção, assim não comete injustiça social, mas a empreiteira. E a posse de 40, 60, 80 e mais anos de uso pacífico daquela terra? E o uso capião, não vale? Por que não vale? E este é só um dos impactos iniciais. Nas usinas do Tapajós haverá inundações de mais de 2.000 quilômetros quadrados, alagando florestas, expulsando milhares de famílias, que vivem da pesca, da roça e dos frutos da floresta.

Alguém pergunta – mas para quem servirá a eletricidade de 5 grandes hidroelétricas, quando o Pará já tem Tucuruí? O linhão já chegou em Itaituba, Santarém e só não chegou nas comunidades ribeirinhas por falta de vontade política. A construção de da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia começa destruindo natureza e expulsando famílias. Será diferente a hidroelétrica de São Luiz do Tapajós, de Jatobá e do Jamanxim? Por que enganar os povos do Tapajós? Quem pode impedir tais desastres? Só povos esclarecidos, unidos e organizados de Santarém, Aveiro, Itaituba e outros. Mas, estão atentos para isso? O que acontecerá no Alto Tapajós atingirá o povo de Santarém? E por fim, eticamente justifica sacrificar povos e comunidades inteiras em nome do progresso? Quem viver verá!

MST: referência para todos os movimentos sociais. Entrevista especial com Dom Tomás Balduíno

Reportagem de Moisés Sbardelotto.
Fonte: UNISINOS

Na comemoração dos 25 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o sabor da festa talvez vai ser um pouco agridoce. Sem dúvida, há muito para se comemorar, especialmente em um marco histórico como esse: são 370 mil famílias assentadas em ocupações de terras; 2 mil escolas públicas em acampamentos e assentamentos; acesso à educação garantido a mais de 160 mil crianças e adolescentes; 50 mil adultos e jovens alfabetizados; mais de 4.000 professores formados; mais de 400 associações e cooperativas criadas em assentamentos, dentre muitas outras conquistas.

A festa, no entanto, poderia ser mais completa se o momento histórico do país tivesse sido a realização de um sonho aguardado há tanto tempo – e também alimentado pelo MST: “O nosso líder, preparado pelos movimentos que vieram crescendo durante 30 anos nesse passado, nos frustrou, na pessoa do Lula”, afirma D. Tomás Balduíno.

Criticando também o Partido dos Trabalhadores (PT), “que nunca foi da terra”, e reconhecendo ainda que o MST se tornou mais “ad intra”, Dom Tomás Balduíno, em entrevista especial por telefone à IHU On-Line, celebra as conquistas do Movimento, que “se tornou referência” para todos os movimentos sociais durante esses 25 anos e reflete sobre a importância da terra como “um novo modo de ser”.

Dom Tomás Balduíno, frei dominicano, é bispo emérito de Goiás e, durante muitos anos, foi presidente nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sendo seu atual assessor. Também participou ativamente da criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Em 2006, recebeu o Prêmio de Direitos do Homem Dr. João Madeira Cardoso, da Fundação Mariana Seixas, de Portugal, e o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Católica de Goiás por sua luta pela cidadania e direitos humanos. Em 2008, recebeu o prêmio Reflections of Hope, da Oklahoma City National Memorial Foudation, como exemplo de esperança na solução das causas que levam à miséria de tantas pessoas em todo o mundo.

IHU On-Line – O que significa comemorar 25 anos de luta pela terra e pela reforma agrária?

Dom Tomás Balduíno – Isso tem um significado brasileiro e latino-americano, porque é uma expectativa de todo o continente, dos povos indígenas, dos negros, dos quilombolas e também dos camponeses. E o MST, para a alegria nossa, tornou-se referência para esses diversos movimentos. Tendo nascido em plena ditadura militar, ele se desenvolveu em oposição ao próprio sistema, ao próprio governo, na linha de uma renovação. Sempre o Movimento – assim como as organizações indígenas – desde que começou a se organizar com o apoio da Igreja, numa linha nova, de se tornar sujeitos de sua caminhada, foi muito além das expectativas particulares dos diversos grupos. Eles foram sempre na linha de uma mudança da política global. Um exemplo disso é o Exército Zapatista. Eles mesmos declararam que o interesse deles não era salvar a causa de uns poucos índios, de uns pobres índios, mas sim a causa do cidadão e da cidadã do México em geral; estavam empenhados nisso.

"O MST tornou-se mais para dentro, mais 'ad intra'. Parece ter menos visibilidade na mídia e mais aprimoramento da própria instituição. Isso deve ser revisto na autocrítica"

Então, o símbolo, a referência maior é a terra. Mas é uma terra que é mais do que terra. Ou seja, não é apenas o pedaço de chão da sobrevivência, mas é a mudança. É um novo modo de ser. Um Brasil diferente, o Brasil que nós queremos, o Brasil dos nossos sonhos. Mas não é um sonho apenas de lavradores e de índios, mas sim de todo o cidadão e cidadã brasileiros. Tomemos uma organização indígena, por exemplo o Coimi [Comitê Inter-Tribal de Mulheres Indígenas]. Eles visam a esse mesmo objetivo. Não é só defender interesses internos indigenistas, mas se integrar na luta geral em vista de um mundo diferente.

IHU On-Line – Quais são os pontos de maior autocrítica do MST, tanto filosóficos quanto práticos e quais são os valores basilares, que não serão abandonados?

Dom Tomás Balduíno – O que entra nessa autocrítica – eles todos estão sensíveis a isso – é o que acontece em todo o movimento, sobretudo em tempos de mudança. Porque houve uma mudança histórica no Brasil. O ante-Lula, o durante-o-Lula e o pós-Lula. Isso teve uma influência sobre os diversos movimentos. Eu acho que influenciou negativamente no sentido de refluir sobre si mesmos. O Movimento – que tinha uma projeção mais ampla, mais integrada aos diversos movimentos, durante esse tempo, sobretudo o do atual governo – em busca talvez de defender recursos para poder manter as suas frentes de trabalho, de formação, tornou-se mais para dentro, mais "ad intra". Parece ter menos visibilidade na mídia, no sentido do avanço da reforma agrária, e mais no sentido de aprimoramento da própria instituição, dos seus quadros, do estudo universitário, da formação em profundidade e em extensão dos seus integrantes. Isso deve ser revisto na autocrítica. O que faz a força do Movimento e o que acaba formando, muito mais do que uma escola, é a própria luta, a luta em vista da obtenção daquilo que é o clamor da sociedade civil, que acaba sendo desprezado pelo governo, que está em outra perspectiva, completamente diferente.

O PT e a terra

Agora, aquilo que é basilar no Movimento é a referência à terra, no sentido da contradição que acompanha a nossa história, desde a chegada dos portugueses, e que pouco a pouco foi se tornando objeto de reivindicação, de luta, de batalhas, de grupos de Antônio Conselheiro, de Zumbi dos Palmares, do Contestado, Trombas e Formoso, tudo em torno da terra. E também no sentido ideológico, de busca de entender o que é a reforma agrária, o que pode ser a solução para a democratização da terra; tornar a terra não matéria-prima do grande negócio nacional e multinacional, de exportação ou de exploração, de devastação, mas ter uma outra convivência com a terra. Eu acho que essa lição o MST traz.

"A terra é mais do que terra. Não é apenas o pedaço de chão da sobrevivência, mas é a mudança. É um novo modo de ser"

O próprio nome, o "T", traz essa marca. Aliás, no nosso país, deveria ter até partido – não só movimento – com referência à terra. Porque o "T" do PT não é terra. Nunca o PT foi da terra, nunca. Ele nunca entendeu a terra. Nunca tivemos um partido liado do povo da terra, no sentido dessa luta. É tudo urbano, é tudo na tentativa de alinhamento com o modelo europeu ou norte-americano, esquecendo da mística que é inerente a esses povos que aqui estão, que são considerados atrasados. E hoje, cada vez mais, com a evolução da problemática ecológica, se percebe que é um povo que traz consigo uma grande sabedoria, que não pode ser perdida, e que corre o risco de ser perdida em vista de um mundo sem alma, sem mística, sem inspiração. Porque, nesse sentido, a terra – quando digo “terra” é mais do que terra – é cultura, terra é festa, terra é a inspiração do povo latino-americano, do povo brasileiro. Nesse sentido, o que eu chamo basilar, fundamental no MST, é essa referência definitiva ao elemento telúrico, que dá a eles um rosto novo, de renovação, de capacidade de trazer para a nossa sociedade uma transformação, uma verdadeira revolução. Aliás, as grandes revoluções mundiais vieram por meio do campo.

IHU On-Line – Dados da CPT apontam uma queda nos números do MST, principalmente no número de famílias que ocupam terras (que caiu de 65.552, em 2003 – primeiro ano do governo Lula –, para 49.158, em 2007) e o de novas famílias acampadas (que foi de 59.082 para 6.299 – menos 89,34%). O MST perdeu sua força original? A que se deve essa redução?

Dom Tomás Balduíno – Exatamente, a pressão governamental. A opção do Lula nunca foi terra. Foi no sentido do grande negócio, dos megaprojetos, transposição do Rio São Francisco, etanol, cana [-de-açúcar], e isso incluindo devastação, a própria Amazônia correndo riscos. Felizmente, a pressão internacional veio a tempo de salvar a Amazônia. Não veio a tempo de salvar o bioma Cerrado, que corre o risco de extinção debaixo da engrenagem do agrohidronegócio. Então, há maior pressão no sentido do arrefecimento dos movimentos, até do próprio MST. A ordem do dia do governo Lula é calma, não se precipitar. Na Marcha dos Sem-Terra, que cinco mil marchantes fizeram, 200Km de Goiânia a Brasília, ele dizia: “o apressado come cru”. É uma maneira de acalmar, arrefecer. E aí vem cooptação, vem verbinha daqui, verbinha dacolá, e o pessoal começa então a se ajustar. Além do mais, a grande marcha brasileira, dos pobres, correndo atrás da Bolsa Esmola (Bolsa Família), e achando que isso é solução, achando que isso vai resolver o problema. Isso dispersou as forças, dispersou a própria força no campo. E sobretudo entrou, concomitantemente, a pressão do latifúndio, da necessidade de grandes áreas, porque o etanol precisa de extensões grandes – eles não escondem isso. E o obstáculo são os pequenos produtores, os pequenos proprietários, os que garantem o alimento ao país, 70% do alimento. Esses estão vendo as terras desaparecerem, um pouco porque estão na pobreza e fazem qualquer negócio.

Soberania militar

Uma outra coisa que é importante no MST – porque ele acompanha, com sensibilidade, a reflexão internacional, através da Via Campesina, de mobilização das forças camponesas no mundo, em vista da defesa da Mãe Terra – é a preocupação com a soberania alimentar. Acho que é um tema muito atual e muito claro, muito explícito, na linha de política do MST, assim como da Via Campesina, de um enfrentamento do agronegócio como uma força que garante a cultura de cada povo. Eu assisti ao Congresso de Mali, na África, no ano retrasado, com a participação de povos de todos os países do Terceiro Mundo, naquele país mais pobre da África, com muita clarividência, com muita garra e certeza de ganhar a luta, ganhar o processo da garantia da soberania alimentar. Porque não é simplesmente a segurança alimentar como muitas vezes as próprias empresas genéticas, de transgênicos, como a Monsanto e outras, acenam para garantir o alimento em grande abundância para todo o mundo. É diferente, é completa e diametralmente oposto àquilo que se propõem os camponeses das diversas partes do mundo, no sentido do respeito à cultura de cada povo, ao modo de fazer, ao modo de se relacionar com a terra, da convivência com a terra, ao invés de forçar de uma maneira brutal. Como a própria transposição do Rio São Francisco: é uma violência brutal contra uma região dita semi-árida e carente de água. Na realidade, é uma região rica. Dentro dos semi-áridos do mundo, é o mais beneficiado com chuvas. Então, o caminho adotado pelo agronegócio, que visa às grandes empresas, visa ao lucro, é brutal, é de destruição, de devastação para introduzir a chamada revolução verde, que acaba sendo um deserto verde.

"O futuro autosustentável é uma das maiores bandeiras do MST"

Pois bem, ao lado disso, já há experiências pequenas, mas muito florescentes, de camponeses, de indígenas, de quilombolas na convivência com o semi-árido. Trata-se de descobrir as formações milenares que vieram se formando, assim como produção de alimento, produção de animais adaptados àquela região, no sentido de um futuro sustentável, autosustentável, que é a proposta da soberania alimentar e uma das maiores bandeiras do MST.

IHU On-Line – As pastorais e a Igreja católica tiveram um importante papel para o nascimento do MST. Como a Igreja se posiciona hoje frente às lutas do MST e as questões da terra?

Dom Tomás Balduíno – Preciso dizer que o MST existe porque houve, por parte da Igreja, a abertura para o mundo: o mundo negro, indígena, popular do Brasil, na linha do Vaticano II de abertura para o mundo. Aqui, quando os bispos tentaram aplicar as conclusões do Concílio Vaticano, a pedido do papa Paulo VI, à nossa realidade, na grande assembléia de Medellín, fizeram a opção pelo pobre, porque o mundo aqui é majoritariamente pobre: é negro, é índio, é povo da rua, é camponês sem-terra, é gente lascada. Isso ficou muito patente. Foi uma assembléia que fez a opção preferencial pelos pobres.

"No nosso país, deveria ter até partido com referência à terra. Porque o T do PT não é terra. Nunca o PT foi da terra, nunca"

Essa opção pelos pobres mudou, porque a Igreja sempre se relacionou com os pobres no passado: as obras de misericórdia, os orfanatos etc. Mas desta vez, no pós-Concílio, a experiência do bispo Leonidas Proaño, no Equador, com os povos indígenas, viu no pobre daqui, no índio, um sujeito de sua caminhada, de sua história, não um objeto da nossa ação caritativa de Igreja, como eram as missões indígenas e os movimentos populares. Houve experiências de bispos que quiseram fazer de organizações camponesas verdadeiras confrarias católicas. Agora não. Autonomia! Eles são sujeitos, autores e destinatários de sua própria luta, do seu próprio futuro. Essa foi a grande mudança.

Esses movimentos começaram a se organizar, independentemente da Igreja. Mas em comunhão sempre. Nós [a CPT] estamos ligados ao MST. E era um tempo em que a Igreja tinha essa abertura para o mundo. Hoje, mudou. Graças a Deus, o MST segue no seu caminho, e na Igreja ainda tem a CPT e o Cimi que continuam, a duras penas, nessa mesma inspiração, de uma opção por esse povo, de futuro do nosso continente, do nosso país. Para dizer a verdade, houve um retrocesso da Igreja, no plano social, justamente no papado de João Paulo II, e a Igreja ainda vive isso numa forma de mais se voltar para a sua identidade clerical e suas funções de culto, do que de profecia no mundo, de ser sal, luz e fermento no meio de um mundo que sofre, como caído à beira do caminho. A Igreja não está mais exercendo aquele papel de samaritana como foi no passado.

IHU On-Line – As comemorações em Sarandi (RS) podem marcar uma ruptura histórica do movimento com o PT e o governo federal, que não foi convidado para o evento. João Paulo Rodrigues, da liderança nacional do MST, afirmou que Lula é “amigos dos nossos inimigos”. Como será a posição do MST frente ao governo Lula e ao PT, tendo em vista as futuras eleições presidenciais?

Dom Tomás Balduíno – Essa é uma estratégia e uma tática próprias do Movimento. Nós sempre respeitamos isso e damos todo o apoio. Sempre demos apoio ao Movimento nas horas, por exemplo, de ocupação de terra. Nunca faltou apoio da CPT. Pode não haver de outras partes da Igreja, que, como eu disse, não estão entendendo mais essa luta social. Agora, muito mais apoiaremos no sentido de buscar corrigir os grandes desvios da política acontecidos nesse governo. Eu acho que é uma missão do MST. Se eles entrarem nisso, vão cumprir uma tarefa que é uma verdadeira expectativa, não só do Brasil, mas do continente latino-americano. Veja os países como Venezuela, Bolívia, Equador e, sobretudo, Paraguai, recentemente. Então, o horizonte é outro. O horizonte não é dos grandes negócios, dos grandes bancos, de sustentar as grandes empresas. Não é isso o que a massa popular espera. É outra coisa. Nesse sentido, se o MST tiver essa inspiração, só poderemos aplaudir.

IHU On-Line – Aproveitando a frase histórica de Barack Obama, “o mundo mudou, e nós precisamos mudar com ele”, frente às mudanças do Brasil com a era Lula, qual será o horizonte do MST com relação ao futuro?

Dom Tomás Balduíno – Sociedade civil. Já houve um tempo em que se pensava num Messias, não em um Moisés, mais do que isso, em um Messias para encabeçar uma mudança. E isso nos levou a uma grande frustração, porque o nosso líder, preparado pelos movimentos que vieram crescendo durante 30 anos nesse passado, nos frustrou, na pessoa do Lula. Não é totalmente ruim. Não podemos igualá-lo a [Geraldo] Alckmin, a [José] Serra, ou a Fernando Henrique Cardoso, mas é decepcionante com relação à expectativa daqueles que o colocaram no poder. Então, acho que hoje o grande sonho, a grande expectativa é fortalecer a sociedade civil não-organizada a partir das bases.

"A Igreja não está mais exercendo aquele papel de samaritana como foi no passado"

Porque tudo virou corporação, gueto nos partidos. Tudo em torno do poder, prostituição em geral – incluindo o PT –, em busca da riqueza, da dominação, de estar bem com os que estão em cima, com os grandes, e se tornar grande com eles. Ao passo que a sociedade civil, muitas vezes, esquece a sua força, sendo que ela é o sujeito de direito, sujeito do poder. A própria Lei maior fala nesses termos. Então, acho que estamos em um momento especial desses diversos movimentos se unirem. Já estiveram desunidos, até em conflito mútuo, como os povos indígenas antigamente, que viviam se hostilizando e depois se resolveram, se reuniram em assembléia e se tornaram uma força. Imagina a força que será o Brasil, não unificando todos os movimentos, mas todos eles procurando esquecer as próprias idiossincrasias, no sentido de caminhar e criar um horizonte pátrio que seja como que um consenso, ou, mais do que um consenso, um engajamento no sentido da mudança. É nesse sentido que eu acho que eles se situam, no concreto, se opondo a Lula. Eles já foram oposição no tempo de Fernando Henrique Cardoso. Não era o PT a oposição, mas era o MST. E agora eles podem ser oposição a qualquer governo que abuse do seu poder contra as expectativas populares.

[grifos do blog]

Para ler mais:

21 de jul. de 2009

Profundidade da crise coloca desafios cruciais para a classe trabalhadora

Escrito por Valéria Nader - economista, é editora do Correio da Cidadania- e Gabriel Brito - jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania


Chegamos quase à metade do ano e já inundam a grande imprensa notícias dando conta de uma incipiente saída da crise, tendo em vista a melhora da balança comercial, uma discreta retomada no comércio varejista e na produção industrial e, por que não dizer, a retomada dos índices Bovespa e assemelhados. Ao mesmo tempo, prognósticos de desemprego vêm se concretizando a passos largos, e já podem ser vistas revoltas em diversos países, não somente periféricos, mas também nos centrais, com trabalhadores se manifestando e empresas fechando, sem que as sonhadas respostas para a superação da crise apareçam.

Diante de tal conjuntura, o Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo Ricardo Antunes, para quem o quadro que se avizinha é devastador, uma vez que não há discussões em torno de uma mudança profunda de nosso modo de vida, somente medidas que mais interessam ao capital que ao trabalhador - o que, em algum momento, chamará novamente pela intervenção do Estado.

Quanto às estimativas de desemprego, Antunes diz que será superada a expectativa de 50 milhões de postos de trabalho perdidos feita pela OIT, até porque o órgão se baseia somente em dados oficiais. Para ele, o debate central passa pela redução da jornada de trabalho, sem perda de direitos, que resultaria na inserção de um enorme contingente de excluídos, desde que dispensados os imperativos do mundo do capital.

Correio da Cidadania: Pensando na economia primeiramente, perto de já completarmos o primeiro semestre de um ano que se anunciou sombrio – a partir de uma queda de 3,6% do PIB no último trimestre de 2008 relativamente ao 3º, com queda de quase 10% dos investimentos e de 7,4 % na indústria -, começam a ser ouvidas vozes de analistas e estudiosos prevendo um início, ainda que incipiente, de saída da crise, especialmente no Brasil. Nesse sentido, essa melhora muito discreta da balança comercial, do comércio varejista e da produção industrial no primeiro trimestre tem algum significado em sua visão?

Ricardo Antunes: Não vou fazer uma análise detalhada dos movimentos da economia, pois não sou economista e, portanto, farei uma consideração de âmbito mais geral. Penso que, dada a amplitude da crise estrutural que vivemos e o fato de nossa economia ser muito interligada, em função da mundialização do capital, esses condicionantes anteriores não permitem uma análise muito otimista do mercado brasileiro.

Claro que medidas como a redução do IPI de vários setores, incentivo à produção aqui e ali, à indústria automobilística, à construção civil etc. têm um impacto imediato no sentido de se contrapor a uma tendência de crise mais acentuada. No entanto, a questão que se coloca é o alcance de tais medidas, uma vez que vemos o quadro norte-americano, europeu e asiático (Japão) em situação muito grave. Isso me leva à seguinte consideração: o epicentro da crise pode se alterar, mas estamos vivendo um longo período depressivo, de decréscimo das taxas de lucro. As opiniões "otimistas" me parecem expressão de uma expectativa não respaldada numa análise global mais forte, visto que imaginam isolar alguns países e crer que possam caminhar à margem da crise, que é mais estrutural e global.

É natural que os países tenham resultados diferenciados, com maior ou menor nível de desemprego. Os dados do trabalho mostram isso. Mas, mesmo quando há uma diminuição no ritmo do desemprego, na seqüência se reconfigura um quadro no mínimo problemático. E a equação da crise, da forma como vem sendo feita nos países centrais – de "socialização das perdas", uma expressão que já nos marcou na 1ª. República –, é a de repassar os prejuízos das empresas e do mercado ao Estado e dele para o conjunto da população, que deverá pagar uma conta pela qual não foi responsável. Isso traz um endividamento público de proporções colossais e alguém terá de pagar essa conta em algum momento.

Sendo assim, não posso corroborar essas análises otimistas. Elas se assemelham àquelas que, há pouco mais de seis meses atrás, diziam que estaríamos imunes à crise, idéia falaciosa e, no limite, equivocada.

CC: O Brasil realmente começou o ano com números alarmantes de crescimento do desemprego. No entanto, nos últimos meses, houve uma mudança de movimento e, apesar de a taxa de desemprego ser ainda crescente, diminuiu o ritmo de perda de postos de trabalho. Pela sua análise, podemos inferir que essa queda de ritmo não chega a ser significativa de alguma virada?

RA: Não creio em virada, mas isso responde a alguns movimentos feitos. O governo, por exemplo, reduziu significativamente o IPI para a indústria automobilística, para a construção civil e outros setores, o que tem incidência nos níveis de emprego, pois o Brasil possui um mercado consumidor interno forte, que em geral sempre foi menosprezado, pelo fato de o pólo central de nossa economia ser prioritariamente voltado ao mercado externo.

À medida que esse mercado externo dá sinais de retração e há incentivos ao mercado interno, pela redução de alíquotas, há uma aceleração da possibilidade de consumo por parte de parcelas da população que costumam ficar à margem do mercado consumidor, criando um bolsão de crescimento, mas que leva à seguinte questão: até quando essa política de isenção de impostos compensa o não-recolhimento do conjunto necessário de impostos, imprescindíveis para o custeamento de outras áreas, como saúde, previdência e educação?

É evidente que, diminuindo o imposto e aumentando momentaneamente o consumo, será possível dizer, por meio das contas, se vale a pena ou não a redução dos impostos em relação ao crescimento da produção. Mas, a médio e longo prazos, esta não é uma alternativa duradoura e efetiva à crise, até porque ela tem outros elementos estruturais mais significativos, dados pelos seus condicionantes externos.

A meu ver, o problema – ainda que o Brasil não esteja entre os países mais atingidos – é imaginar que já saímos do pior sem observar o cenário internacional e como a crise continua forte nos países que estão no coração do sistema. Nós, em verdade, estamos no centro de uma crise estrutural do sistema do capital, que inicialmente devastou o chamado 3º. Mundo, depois arrasou o Leste Europeu e agora está no coração dos países capitalistas centrais. E essa crise, além de estar operando o que venho chamando como uma nova era de demolição do trabalho, é profundamente destrutiva em relação à natureza, colocando em risco o próprio futuro da humanidade. Neste sentido, ela é estrutural e devastadora.

CC: Nesse sentido, PAC, novo pacote habitacional, incentivo ao setor automobilístico, as medidas mais importantes do governo pra combater a crise, tão ufanisticamente tratadas pelos seus interlocutores, têm, efetivamente, um impacto limitado na economia e no mercado de trabalho.

RA: Sim, um efeito conjuntural, na medida em que reduzem as taxas de desemprego, que seriam ainda maiores. Mas as informações dos EUA, da Europa e Japão, mostrando taxas mais altas de desemprego, empurram o cenário para um quadro ainda mais crítico.

As medidas podem diminuir um pouco o nível de desocupação, mas agora vimos, nos dados mais recentes do IBGE, uma alta taxa de desemprego nas principais regiões metropolitanas, inclusive incidindo sobre jovens com relativa qualificação. Isso parece mostrar o caráter momentâneo e conjuntural das medidas do governo, até porque todo o modelo brasileiro, inclusive no governo Lula, é voltado à dependência do mercado externo, através das commodities e da exportação.

Quando há uma retração forte no mercado externo, afeta nossa produção. A redução de IPI incide, portanto, positivamente no mercado interno, mas não nas commodities e no mercado externo.

CC: E quanto às medidas voltadas ao mercado de trabalho mais especificamente, qual é a sua opinião quanto à postura do governo frente ao discurso recorrente do patronato na defesa da flexibilização dos direitos trabalhistas para enfrentar a crise? Não deveria e poderia este mesmo governo, em direção oposta à flexibilização, exigir mais contrapartidas das empresas beneficiadas com ajuda pública?

RA: Claro. No primeiro momento, a redução do IPI já não foi sequer condicionada à não-demissão, tanto que algumas empresas obtiveram o benefício e demitiram, o que mostra a timidez das medidas, que atendem muito mais aos interesses do capital do que aos do trabalho. A redução momentânea do IPI deveria, no mínimo, ser rigorosamente condicionada à manutenção do emprego e à contratação de novos setores. E há outro ponto fundamental, que é a necessidade de tributar – e não desonerar – os capitais.

Outra questão é que o governo não atendeu a nenhuma bandeira dos trabalhadores e do sindicalismo de classe, como, por exemplo, reduzir a jornada sem diminuir salários e direitos. O governo é tímido com relação a tais medidas, pois sabe que elas não interessam ao grande capital.

Como se trata de um governo de conciliação, que garante os interesses do grande capital, do capital financeiro, do grande capital produtivo, os maiores beneficiários da política econômica do governo Lula, uma medida como essa – a redução efetiva da jornada de trabalho sem perdas de direitos e de salário - poderia ter efeitos positivos, pois aumentaria o ingresso da força de trabalho sobrante no mercado de trabalho, dado nosso alto nível de desemprego. No entanto, trata-se de uma providência que, em alguma medida, fere os interesses do grande capital; por isso ela sequer é seriamente cogitada pelo governo.

CC: O professor de Economia da Unicamp, e atual diretor do IPEA, Marcio Pochmann defendeu uma jornada semanal de trabalho de 12 horas em um curso sobre a crise mundial que está sendo promovido, entre outros, pelo jornal Brasil de Fato – apesar do reconhecimento de que não há hoje força política para se alcançar esta bandeira. O que você pensa disso?

RA: Acho que ele tem razão. Com a redução de jornada e as pessoas trabalhando algumas horas, em alguns dias da semana, a produção voltada ao consumo da humanidade estaria garantida. Mas somos uma sociedade concebida desde seu nascedouro como uma sociedade do trabalho, em que o papel da classe trabalhadora é criar mais valor apropriado pelo mercado e grandes empresas capitalistas. Essas, se pudessem, prolongariam a jornada e/ou aumentariam, como fazem, a intensidade e a exploração do trabalho através do conhecimento técnico-científico-informacional dentro da produção - de modo que, intensificando o tempo de trabalho e aumentando a maquinaria técnico-científica, o capital se remuneraria muito mais, obtendo muito mais lucro e mais-valia.

Mas Marx já nos alertava de que uma proposta significativa para redução de jornada não é do interesse do grande capital. Há cerca de uma década, na França, com muito mais tradição de lutas operárias e conflito social, houve uma proposta de uma redução muito moderada da jornada e, ao longo de meia década depois, o capital francês impediu que esse processo resultasse em algo positivo para a classe trabalhadora. Assim, revela-se um pouco da prática do empresariado. Portanto, reduzir substantivamente a jornada de trabalho é um embate profundo entre as forças sociais do trabalho e os interesses dominantes do capital em escala global. Reduzir a jornada de trabalho, tendo como base o tempo disponível da população trabalhadora, de modo que se preservasse o consumo necessário da humanidade, é fundamental, mas fere os interesses do sistema de capital, fundados numa sociedade (da exploração) do trabalho.

O que quero dizer é que reduzir a jornada sem reduzir direitos é um embate político fundamental do trabalho contra o capital, desde os primórdios da Revolução Industrial. Com o padrão técnico-científico que temos, se os interesses dominantes não fossem os do capital, se os imperativos não fossem os do capital, poderíamos ter uma jornada de trabalho muito menor, com menos tempo e dias de trabalho, e tendo a população trabalhadora vivendo com mais dignidade e aumentando seu tempo de vida fora do trabalho. Mas para tanto precisamos caminhar para outro modo de vida e de produção, para além do capital. Por isso se trata, antes de mais nada, de uma luta social e política de grande envergadura.

CC: Pensando em termos mundiais, acredita que vá se confirmar a projeção da OIT de aumento de 50 milhões no número de desempregados em 2009?

RA: Será muito mais do que isso. A OIT opera com dados oficiais. É difícil fazer a captação de dados não-oficiais. Por exemplo: se a China perdeu em poucos meses 26 milhões de trabalhadores urbanos que migraram do campo em busca de trabalho nas cidades, só contabilizando o desemprego real da China, da Índia, do resto da Ásia, África, América Latina, e mesmos os países centrais, teremos taxas de desemprego maiores do que as previstas pela OIT, que já são explosivas, pois 50 milhões de seres humanos desempregados só em 2009 já configuram uma taxa explosiva.

Mas, com os elementos que colhemos dos EUA, Europa e Japão, se incluídos nesse cenário avassalador os demais continentes, teremos um desemprego real ainda maior.

Sabemos que o desemprego oculto freqüentemente não é apreendido pelos dados oficiais, aquele sujeito que trabalha só algumas horas por semana não consta como desempregado, assim como o sujeito que já não procura emprego há mais tempo também deixa de ser contabilizado.

Estive duas vezes em Portugal recentemente, em novembro e fevereiro. A situação que se pode constatar é de que os jornais não ficavam um dia sem estampar em suas manchetes notícias de inúmeras empresas que fechavam. De todas as áreas, farmacêutica, turística, bancária etc.

CC: Avaliando as saídas para a atual crise, que além de econômica tem uma forte e reconhecida vertente ambiental, é fato que o planeta terra não vai conseguir atender a toda a humanidade a se prosseguir a lógica atual do capital. Estamos, assim, metidos em um buraco de proporções razoáveis. Ainda que não esteja no horizonte próximo o fim do capitalismo, configura-se uma crise do modo de produção capitalista?

RA: Claro. Se a economia continua em retração e crise, ela desemprega. Ao manter o desemprego, aumentam as mazelas e a barbárie, em amplitude global. Vivemos uma situação desesperadora para muitos milhões de trabalhadores e trabalhadoras, com bolsões cada vez maiores de "supérfluos", "descartáveis", para os quais não há qualquer programa efetivamente alternativo de saúde, previdência, remuneração social etc. São os bolsões que vivenciam as mais brutais precariedades.

Como disse acima, estamos numa longa crise, cujo epicentro se altera. Por exemplo: os EUA estavam em crise profunda nos anos 70, recuperaram-se no final dos anos 80 e nos 90, depois entraram em novo desabamento; ou o Japão, no auge nos anos 70, época do milagre japonês, até os anos 80, e que num dado momento entrou num quadro crítico que se mantém até agora. Portanto, o epicentro da crise se alterna, mas suas conseqüências são profundas para a classe trabalhadora.

A China, por exemplo, apresentou níveis altíssimos de crescimento, chegando a 12% ao ano, mas hoje vive uma retração também fortíssima. E imagine o que é uma retração num país como a China, de quase 1,5 bilhão de habitantes e quase 1 bilhão de População Economicamente Ativa. Imagine cada ponto percentual a menos de crescimento, em quantos milhões de desempregados isso resulta. E o trabalhador chinês que foi para a cidade, nesse salto capitalista da década de 90, não tem como retornar ao campo, pois lá não há alternativas de trabalho. E ele já viveu uma socialização no mundo urbano que faz a volta ao campo deixar de se colocar como possibilidade.

Se a economia se mantém em depressão, então, o desemprego aumenta; se, em contrapartida, dá sinais de crescimento, teremos a destruição da natureza, aumento da poluição ambiental, degelo acentuado, uma confluência de destruições trazendo riscos profundos à humanidade.

Assim, veja a tragédia em que nos encontramos: se aumentar o desemprego, a barbárie social se torna ainda mais brutal; se retomarmos o ritmo de crescimento, teríamos aumento de doenças, contaminações e demais conseqüências, como já vemos em grandes cidades do mundo, com o agravamento da poluição cada vez mais insuportável. "Se correr o bicho pega, se parar o bicho come". É a tragédia que vivemos.

CC: Qual a alternativa que se apresenta? Há como começar a buscá-la pela perspectiva neokeynesiana tão em voga nessa crise, a partir de reformas do Estado dentro do capitalismo, com maior regulamentação do mercado?

RA: Se olharmos o século XX veremos que o keynesianismo e o neokeynesianismo foram fagocitados pelo sistema do capital. De 1945 a 1968, apogeu do sistema keynesiano, do welfare state, quando parecia no final dos anos 60 que o Estado havia controlado o capital, vimos o inverso: o capital engoliu e desestruturou o Estado a tal ponto que criou o Estado neoliberal, que nada mais é que um Estado forte para os capitais e completamente destroçado no que diz respeito às suas atividades públicas, coletivas e sociais. O que é público foi destroçado e um poderoso Estado todo privatizado foi fortalecido. Foi o que vigorou desde a eleição da Margareth Thatcher, que tragicamente, poucos dias atrás, completou 30 anos da vitória desta verdadeira hecatombe social, com a subseqüente expansão do neoliberalismo para praticamente a totalidade dos países do continente, salvo poucas exceções.

E há outra experiência que deve ser lembrada, a soviética. Fruto de uma revolução socialista e popular em 1917, ela também, em sua processualidade complexa e contraditória que aqui não podemos explicar, fortaleceu e hipertrofiou o Estado ao limite. Podemos dizer que lá não houve a constituição do sistema socialista, mas um fortíssimo processo de estatização da economia e regulação, e mesmo eliminação, em vários aspectos, do capitalismo. E o que aconteceu? Em 1989, o sistema de capital, que se manteve inalterado (conforme a indicação de Mészáros), acabou destruindo esse Estado todo poderoso soviético, o chamado "bloco socialista". Esse histórico nos faz crer que a idéia de fortalecer o Estado para superar a crise é um misto de farsa e também de tragédia.

O desafio de hoje é de outra amplitude. A crise é sistêmica e estrutural porque coloca em xeque, primeiro, a sobrevivência da humanidade, já que sua força de trabalho é destruída em quantidades inimagináveis - nunca houve tanta conversão de milhões de homens e mulheres, que dependem do trabalho para sobreviver, ao desemprego. Não que adorem trabalhar, mas sem isso eles não vivem, não se reproduzem em sociedade. Atingida a casa das centenas de milhões por essa parcela que não encontra trabalho, a destruição sócio-humana é brutal.

O processo de destruição da natureza também chega a proporções inimagináveis. Não podemos mais dizer que a destruição ambiental é um risco para o futuro da humanidade, pois o é para o presente. Se a humanidade vem sendo destroçada diuturnamente, é um desafio seu repor a questão da construção de um novo modo de produção e de vida que, em primeiro lugar, resgate o sentido estruturante e fundamental do trabalho como criador de bens materiais, culturais e simbólicos totalmente úteis e necessários para a humanidade. Em segundo lugar, é preciso um sistema de metabolismo, para usar expressão de Marx, entre a humanidade, que expresse a recriação de ambos, trabalho e natureza, não a destruição de ambos. Isso o sistema de capital, com seus imperativos e constrangimentos, impede que se realize.

Portanto, o desafio central do início do século 21 é a superação do sistema do capital e a retomada do projeto socialista. O que coloca outra questão vital: as saídas da crise, para um lado ou outro, dependerão da temperatura das lutas sociais em escala global, dependerão do patamar da luta entre as forças sociais do trabalho, de um lado, e as forças destrutivas do capital, de outro. No passado se dizia: esse é o búsilis da questão!

CC: De que tipo de socialismo estamos falando para o século 21, a seu ver?

RA: Claro que não pode ser a repetição do socialismo experimentado no século 20. Assim como fracassou o sistema keynesiano, como falamos anteriormente, é evidente que a experiência russa, a chinesa, para ficar nas mais importantes, também fracassaram.

Sobre a russa não paira mais nenhuma dúvida, uma vez que a ex-URSS já se reconverteu ao império do capitalismo à força; e a tragédia da China é de tal amplitude que hoje há milhões de desempregados, com milhares de levantes ocorrendo a cada fechamento de fábrica. Tanto é assim que a China vem sendo um laboratório de lutas sociais, enfrentamentos e tensões fundamentais, o que não pode ser atribuído à Revolução de 49, pelo contrário. Parece evidente que a China atual não tem mais nenhum vínculo forte com a sua Revolução original. Basta dizer que há três anos o PC reconheceu em seu estatuto o direito de a burguesia se filiar ao partido, uma completa heresia para qualquer variante do marxismo! E mais: a camada de novos milionários nascida na China da última década criou uma burguesia milionária que não permite falar seriamente em nenhum tipo de socialismo chinês.

Resolver a situação dizendo que lá há "socialismo de mercado" é desconhecer a formulação decisiva de Marx, que poderia ser sintetizada assim: "onde há mercado capitalista, não sobrevive o socialismo. E onde há socialismo efetivamente construído, não pode haver mercado capitalista". Sendo assim, a equação do "socialismo de mercado" se mostrou falaciosa. Pode ter hoje uma justificativa ideológica do governo chinês, mas as condições de exploração do trabalho na China inspiram muitos dos próprios países capitalistas...

CC: Nesse sentido, como se coloca a perspectiva socialista, qual seja, como avançar rumo ao socialismo? Um projeto socialista não poderia, ou deveria, começar por pequenas reformas, como, por exemplo, a luta por uma jornada menor?

RA: É claro que esse é um processo mais complicado. Nós sabemos como o socialismo no século 20 não deu certo. Assim como o sistema keynesiano fracassou em regular o capital, o sistema soviético fracassou em destruí-lo, tendo ocorrido o contrário. Essas são, portanto, experiências que devem passar por um profundo crivo analítico.

A redução da jornada de trabalho não é uma bandeira pequena, pois mudá-la é tocar no ponto fundamental de Marx: o tempo. O capital converte o tempo no tempo do capital. Deixar o controle do tempo nas mãos da humanidade ou do capital não é uma questão pequena, não é uma medida reformista singela.

Mas o interessante na crise é que ela fez virar pó a idéia de que o capitalismo é eterno, na qual tanto se havia acreditado. Eis o primeiro ponto importante a ser mostrado a todos. Usando uma frase genial do Marx, tudo que é sólido se liquefaz. Ou seja, o capitalismo vive um processo de derretimento. Quantos trilhões de dólares viraram pó? Citybank e todos os seus afiliados tiveram desvalorização monumental nas transações nos EUA; a GM e a Chrysler estão à beira da falência. Ou seja, o capitalismo conseguiu, com suas próprias contradições, estabelecer uma crise muito profunda.

CC: A classe trabalhadora tem como costurar um projeto nesse sentido hoje?

RA: Outro ponto nesse sentido, de tudo que é sólido se liquefazer, é que as lutas dependem do nível de confrontação social, do patamar das lutas sociais entre as classes. É isso que definirá para qual caminho vai uma reforma. Ninguém disse que o capitalismo vai acabar. Podem-se prolongar por decênios crises que vão sendo empurradas com a barriga, aumentando a socialização das perdas, de modo que o mundo do trabalho pague pelas perdas do capital. Essa é a alternativa do capital. Depois, ele faz do Estado um pêndulo. Ora um Estado mais intervencionista, ora um Estado não intervencionista.

Que sistema e modo de vida queremos? Isso nos obriga a discutir o princípio do trabalho, se ele se estrutura no capital ou na humanidade. Se for na humanidade, deve desestruturar o capital. Também devemos discutir que relação metabólica queremos. É um completo equívoco no meu entender imaginar que podemos ter uma vida transformada sob o comando da propriedade privada. Assim, coloquemos novamente em discussão o sentido da propriedade privada. Ela tem como conseqüência o enriquecimento de menos de 1% da população, enquanto mais de 90% fica despossuída. A embaralhada em que estamos é de grande envergadura.

Diria, de forma conclusiva, que vivemos algo parecido ao início do século 20. Nessa época, fazendo um paralelo geofísico, as placas tectônicas se movimentaram. Tivemos revoluções, a vitória dos países aliados, o nascimento e morte do chamado bloco soviético, enfim, uma reorganização muito grande do mundo. Agora, começamos o século 21 com as placas também nervosas, se mexendo. Temos um nível de temperatura social que coloca, em nível mundial, as forças do trabalho em oposição às do capital.

Não desconsidero o fato de que os últimos 30 anos marcaram a contra-revolução burguesa no sentido global, mas essa vitória do capital sobre o trabalho começa a dar sinais de esgotamento, com a crise do neoliberalismo, a crise estrutural do capital e o nascimento de uma nova morfologia do trabalho, cujo traço particular são as novas formas de lutas sociais. Por exemplo, a América Latina tem mostrado avanços em várias partes, através de descontentamentos sociais. Na Ásia – China, Coréia, Indonésia, Japão –, existem contradições muito profundas, também com lutas sociais. O mesmo ocorre muitas vezes na África, na América do Norte e até na Europa.

As placas tectônicas estão se mexendo, há uma nova morfologia do trabalho e essas lutas, apesar de tudo, são as lutas históricas que conhecemos - greves e manifestações. Por outro lado, existem também novas lutas, como aquelas contra a privatização da água, dos minérios e riquezas energéticas, que colocam a temperatura social em ebulição.

Não estamos dizendo que está acabando o capitalismo, mas temos razoável convicção de que ele tampouco é eterno. A equação dessa crise passa pela temperatura das lutas sociais e sua conflagração entre as classes. Isso pode significar retrocesso, com uma extrema-direita no poder – imaginem um retrocesso num mundo que já tem Berlusconi e Sarkozy -, ou uma retomada no século 21 das potencialidades das lutas sociais.

Atrelados a empreiteiras, governos seguem ignorando direito à moradia

Escrito por Gabriel Brito, jornalista.
Fonte: Correio da Cidadania


Na semana passada, integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) iniciaram uma jornada de protestos diante da casa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no centro de São Bernardo do Campo. Na ocasião, integrantes do movimento se acorrentaram diante da residência, recebendo a companhia de outro companheiro a cada dia passado sem negociações. Começando com três acorrentados, o número se elevou a oito até a visita de um assessor da presidência (em 13/07).

O movimento exige a desapropriação de diversos terrenos, a regularização de cerca de 2000 famílias do acampamento Anita Garibaldi, maior celeridade na resolução da situação do Acampamento Carlos Lamarca, entre outras questões. Em entrevista ao Correio da Cidadania, o dirigente Guilherme Boulos afirmou não ter restado alternativa diferente ao movimento, ignorado em suas reivindicações e sofrendo despejos freqüentemente violentos, em franco conluio do poder público com a especulação imobiliária.

Destacando o fato de muitas famílias estarem há quase 10 anos esperando pelo acesso à moradia, Boulos lamenta o fato de o movimento ser duramente reprimido quando busca somente a aplicação da função social da terra e do direito constitucional a todos garantido da casa própria. Talvez o fato, para ficar em um exemplo, de o prefeito paulistano Gilberto Kassab ter recebido das empreiteiras 12 milhões dos 27 milhões de reais gastos em sua campanha seja explicativo.

Com a força do capital especulador e financiador de campanhas, ele não hesita em dizer que o programa Minha Casa, Minha Vida lançado pelo governo "não tem a menor condição de solucionar o déficit habitacional no país", uma vez que, além da desequilibrada destinação de subsídios, não enfrenta a questão das desapropriações e os interesses das empreiteiras e especuladores da terra.

Correio da Cidadania: O que levou os integrantes do movimento a chegarem a tal ponto em seus protestos, acorrentando-se diante da residência do presidente?

Guilherme Boulos: O que levou aos acorrentamentos foi o esgotamento das outras possibilidades de mediação. O governo federal estabeleceu uma série de compromissos com o MTST, como a construção de casas e viabilização de empreendimentos que atendam à demanda do movimento. E desde alguns anos, pelo menos 2005, quando esses compromissos começaram a ser estabelecidos, não vêm sendo cumpridos.

O que na verdade tem acontecido, ao contrário de empreendimentos de construção habitacional, são despejos. Estamos com problemas concretos de despejo na região de Sumaré, previsto para daqui a duas semanas, sendo que a localidade abriga 4000 pessoas; existem ainda casos de famílias que esperam há anos por acordos em situação precária; e o programa ‘Minha Casa, Minha Vida’ lançado pelo governo tampouco sinalizou que irá incluir essas famílias mais necessitadas e que esperam há muito tempo.

Por todo esse conjunto de fatores que fomos protestar diante da casa do presidente.

CC: E são aproximadamente quantas famílias envolvidas em todo o estado de São Paulo à espera de uma moradia?

GB: Somente no estado de São Paulo calculamos quase 20.000 famílias vinculadas ao movimento. Aqueles que estão na casa do Lula o fazem em nome de todo esse contingente.

CC: Há quanto tempo, em médias, essas famílias estão esperando pela concessão de suas moradias?

GB: Isso depende de caso a caso. Há famílias que esperam há oito, nove, dez anos. E há também aquelas que não se organizam nos movimentos sociais e só se cadastram nos programas do governo. Esses casos podem chegar a até 20 anos.

No movimento muitas famílias esperam há cerca de 8 anos, como disse, e ainda não foram contempladas.

CC: Qual a rotina dos acampamentos, em que condições passam os dias e meses as pessoas alojados com o movimento?

GB: As condições dos acampamentos são extremamente precárias no sentido da infra-estrutura urbana. Na medida em que há uma ausência do poder público para suprir as necessidades básicas das famílias, as condições são muito precárias em termos de saneamento, alimentação, enfim, todas as dificuldades que existem não só nas ocupações do movimento, mas também no conjunto de todas as grandes periferias urbanas.

No entanto, quando o movimento social está presente, de alguma forma essa situação é contrabalanceada pelo trabalho coletivo, solidariedade e ajuda mútua que existe entre as pessoas que fazem parte desse processo de luta.

As condições permanecem sendo precárias, mas há uma solidariedade maior que torna a sobrevivência possível.

CC: Quais têm sido as posturas do governo na condução do processo e trato dos militantes?

GB: Até hoje (segunda, 13/07) não havia sido aberta negociação. Exatamente hoje tivemos uma reunião com um assessor da presidência, que veio a São Paulo dialogar com o movimento, sem ainda uma sinalização clara de proposta governamental para atender às demandas e reivindicações apresentadas por nós. De toda forma, abriu-se um andamento da negociação, a fim de solucionar nosso problema.

CC: O que, em sua opinião, impede o governo de regularizar as moradias e posses de terrenos em áreas há muito tempo ocupadas e que muitas vezes não estão cumprindo nenhuma função social e/ou econômica?

GB: Na nossa avaliação a força do capital imobiliário, a importância da indústria da construção civil, a importância dos especuladores imobiliários e também seu peso político, inclusive com bancadas parlamentares e financiamentos de campanha, são todos fatores decisivos para que tais setores mantenham seus privilégios, muitas vezes de forma ilegal.

A Constituição assegura a função social da propriedade. Mas a gente vê grandes latifúndios urbanos abandonados há anos, servindo apenas à especulação, sem serem desapropriados e sem que haja posturas do governo, em todas as suas instâncias, no sentido de fazer valer alguma função social da terra.

E quando o movimento busca a aplicação dessa função social da terra em muitas vezes é tratado com repressão.

CC: E essa repressão por você mencionada tem sido exagerada?

GB: Considerando só o MTST, temos sofrido nos últimos anos – além das formas mais tradicionais de repressão, como violência policial direta, protestos judiciais e criminais contra dirigentes do movimento, despejos arbitrários – ações civis de interdito proibitório, que impedem o movimento de se manifestar em prefeituras, o que também ocorre com o movimento sindical no Brasil, com interditos que impedem greves e piquetes em determinadas fábricas e empresas.

Portanto, além da repressão de sempre, estamos tendo nosso direito de manifestação tolhido.

CC: Você teria em mente situações que tenham deixado claro algum tipo de conluio entre iniciativa privada e poder público em lutas do movimento, como concessão de terrenos, despejos?

GB: Ah, sim, são casos muito freqüentes. Podemos dar vários exemplos. Houve um despejo em São Paulo no qual as famílias receberam indenizações pagas por uma incorporadora que tinha interesse no terreno vizinho, pois desenvolvia um empreendimento ao lado da ocupação. O poder público se aliou à empreiteira, interessado em valorizar o terreno em construção, e deu uma migalha para as famílias saírem.

Em outra oportunidade, ocupamos o terreno de uma grande multinacional, financiadora de campanha, e na época tanto parlamentares como o governador Geraldo Alckmin se posicionaram de maneira truculenta em favor do despejo, defendendo os interesses da empresa.

Enfim, eu poderia aqui recorrer a uma série de exemplos. É muito frequente essa promiscuidade entre o capital privado do setor imobiliário e o poder público no ataque aos direitos das famílias sem teto.

CC: Acredita que o pacote habitacional lançado por Lula, tão elogiado por teoricamente se voltar aos brasileiros de menor renda, surtirá algum efeito real nessa camada de pessoas que ainda não conseguem acessar sua moradia própria? Acredita que ajudará a reduzir o déficit habitacional ao menos em algumas metrópoles?

GB: Esse pacote é muito limitado. Primeiro porque apenas 40% das unidades habitacionais previstas no programa são voltadas às famílias que ganham menos de três salários mínimos, que correspondem a praticamente 90% do déficit habitacional.

Em termos de subsídio, a proporção é ainda menor: apenas 20% dos recursos do programa serão voltados a essa camada. O programa está voltado para atender a apenas 14% do déficit habitacional do país. Esse problema é muito mais grave no Brasil.

Claro que a existência de mais subsídio para as classes populares tem um significado, mas a maneira de condução do programa, dando centralidade às empreiteiras como agentes fundamentais, e a taxa de renda que acabará pegando pela destinação de recursos fazem com que esse programa não tenha a menor condição de solucionar o déficit habitacional no país, principalmente nas grandes metrópoles, onde o valor da terra, muito mais alto por conta da especulação imobiliária, exigiria uma política de desapropriações.

E o ‘Minha Casa Minha Vida’ não prevê desapropriação, apenas negociações e compras de terra. Sem o instrumento das desapropriações, da troca de terra por dívida, que possuem centralidade no tema da função social da propriedade, não se resolve o déficit habitacional do Brasil.

CC: E como você analisa as perspectivas futuras do movimento no atual contexto de lutas dos movimentos sociais no país?

GB: Diante da crise econômica internacional, da carência cada vez maior de condições mínimas de vida digna à maioria da população brasileira, latino-americana, estamos diante de um grande desafio aos movimentos populares, e nisso o MTST tem sua responsabilidade, que é desenvolver cada vez mais o trabalho de base e organizar o povo que está desamparado e sem perspectiva nas periferias urbanas, fazendo grandes lutas e mobilizações para mudar essa realidade social.

A visão do MTST é a de que a sociedade capitalista é predatória e que nossos problemas não poderão ser resolvidos nos marcos desta sociedade. A luta nossa e dos movimentos populares, conseqüente com uma perspectiva de libertação, se confunde com as batalhadas do conjunto da classe trabalhadora por uma nova sociedade.

Esse é o desafio que nos colocamos em todas as nossas atividades de organização popular, mobilização, luta e pressão contra os governos.

14 de jul. de 2009

Faltam 3 milhões de empregos na AL

Artigo de Jean Maninat, diretor regional da Organização Internacional do Trabalho para a América Latina e o Caribe, publicado no jornal O Globo, 14-07-2009.
Fonte: UNISINOS



Nas ruas da América Latina a crise econômica se define sem ambiguidade: desemprego. De fato, em 2009 a região deveria criar mais de 3 milhões de postos de trabalho somente para recuperar os níveis do ano anterior.

Mas isto não vai ocorrer.

O grande desafio das economias latinoamericanas frente à crise é produzir empregos. Trata-se de apagar os rastros mais profundos que esta recessão nos deixa, a que golpeia as pessoas e suas esperanças. Além disso, os postos de trabalho são cruciais para restabelecer o consumo e apoiar o círculo virtuoso da recuperação.

Agora que começaram a ser detectados sinais de que a crise poderia ter chegado ao fundo, ou que, ao menos, tenha amainado, esse desafio é ainda mais urgente: segundo estudos da OIT, as crises afetam de maneira instantânea o emprego, mas, quando a recuperação chega, isto demora muito a notar-se nos mercados de trabalho. Poderíamos conviver com esta falta de oportunidades de trabalho por mais cinco anos, com ou sem crise.

Quem busca esses milhões de empregos na região? Já sabemos que um número importante de pessoas perdeu o trabalho devido à crise. Além disso, deve-se levar em conta que a cada ano entre 3 e 4 milhões de pessoas se incorporam aos mercados de trabalho regionais, principalmente jovens, para os quais esta crise traduz-se em falta de expectativas.

A turbulência que vivemos agita o mundo dos indicadores. As retificações são frequentes. Em todo o caso, os últimos dados disponíveis nos falam de um crescimento negativo em torno de 1,7 por cento na região latino-americana.

Este é o final de um ciclo positivo de cinco anos de crescimento e de queda no desemprego cuja taxa (urbana) agora poderia subir dos 7,5% registrados em 2008 para algo entre 8,7% e 9,1% em 2009, de acordo com um cálculo realizado conjuntamente pela Cepal e pela OIT.

Isso significa que entre 2,8 e 3,9 milhões de pessoas poderiam somar-se às filas de desemprego, que no ano passado já afetava quase 16 milhões de latino-americanos.

Quando se fala de postos de trabalho, atrás dos números sempre há pessoas.

Neste caso, esses números são um insumo poderoso para justificar que as políticas econômicas desta região coloquem a geração e preservação de postos de trabalho como seu objetivo fundamental. Isso, que parece óbvio, nem sempre é assim. Durante anos os esforços se concentraram em outros indicadores, assumindo que o mercado de trabalho reagiria automaticamente, o que, com frequência, não aconteceu. No momento atual, já não existe espaço para essas experiências.

Enfrentar esta crise laboral é a meta fundamental do Pacto Mundial para o Emprego, aprovada por governos, empregadores e trabalhadores de todo o mundo na reunião anual da OIT em Genebra.

Este pacto é um compromisso de buscar o caminho mais adequado com o objetivo de gerar postos de trabalho, redirecionando investimentos, investindo recursos para estimular a economia real, pondo em prática políticas para que as empresas sejam sustentáveis, protegendo as populações mais vulneráveis, recorrendo ao diálogo social para obter acordos, entre outras recomendações.

Na América Latina existem vários países onde se começou a trilhar este caminho. Mas é fundamental não perder de vista o objetivo de gerar trabalho decente, de converter os planos em ações e não nos desviarmos do caminho. Se não tivermos êxito, os que buscam emprego se sentirão frustrados e decepcionados, o aumento da pobreza será notório, a saída da crise poderá ser imobilizada e tudo isto poderia afetar a governabilidade democrática.

7 de jul. de 2009

Onde há fumaça há fogo

"Para que a prosperidade das sociedades humanas respeite seus limites ecológicos, o futuro exigirá uma estabilização do consumo. E esta é a questão central: há macroeconomia que não seja essencialmente baseada no aumento incessante do consumo?", pergunta José Eli da Veiga, professor titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo, em artigo publicado no jornal Valor, 07-07-2009.
Fonte: UNISINOS


Estão à vista dois significativos sinais de fumaça sobre o que poderá ser a renovação do pensamento econômico no Século XXI. Principalmente o relatório "Prosperidade sem crescimento?", da Comissão de Desenvolvimento Sustentável do governo britânico, lançado no início de abril, às vésperas da cúpula londrina do G-20. Mas também o rascunho das conclusões da comissão criada pelo presidente francês Nicolas Sarkozy com a missão de propor novas maneiras de medir desempenho econômico e progresso social, em consulta pública desde o início de junho.

Embora suas mensagens não cheguem a ser convergentes, esse par de relatórios ilumina alguns dos mais sérios problemas da ciência econômica. O primeiro se contrapõe ao próprio alicerce da teoria macroeconômica, enquanto o segundo mostra as incongruências do sistema de contabilidade nacional que dela emergiu. Certo, nenhum dos dois traz propostas que já tirem o sono de especialistas das duas áreas. Ao contrário, enfatizam as barreiras epistemológicas e empíricas que ainda precisarão ser ultrapassadas para que possam surgir uma macroeconomia e uma contabilidade adequadas ao desenvolvimento sustentável. Todavia, como diz o velho ditado, onde há fumaça há fogo.

A argumentação do relatório britânico parte da constatação de que o crescimento econômico piora a depleção ecossistêmica absoluta, mesmo quando o consumo de energia e matéria aumenta menos que o produto. Em outras palavras, que não é absoluto o chamado descolamento entre uso de recursos naturais e expansão produtiva, por mais intenso que ele possa ser em termos relativos. Então, para que a prosperidade das sociedades humanas respeite seus limites ecológicos, o futuro exigirá uma estabilização do consumo. E esta é a questão central: há macroeconomia que não seja essencialmente baseada no aumento incessante do consumo?

A única resposta positiva a tal pergunta foi dada por um modelo que simulou quatro cenários básicos em que a economia canadense reduziria gradualmente suas taxas de aumento do PIB para atingir, após dois decênios, uma situação sem crescimento (no growth). Situação semelhante àquela que os clássicos haviam chamado de "condição estacionária", e que Herman E. Daly preferiu chamar de "condição estável" (steady state), embora nenhum desses dois rótulos realmente corresponda à ideia de uma sociedade que prospera sem que sua economia aumente, âmago da pesquisa de Peter Victor "Managing Without Growth - Slower by design, not disaster" (Ed. Edward Elger: 2008).

Nos quatro cenários caem pela metade os níveis de desemprego, de pobreza e da relação dívida/PIB. O que varia é o volume de emissões de gases estufa. Sem taxação do carbono, esse volume aumentaria 30% se houvesse mais ênfase em investimento do que em comércio internacional, e 14% na hipótese inversa, com mais comércio e menos investimento. Com carbono tributado, essas elevações se transformariam em quedas de 22% e 31% respectivamente. O que permite inferir que a prosperidade sem crescimento poderia ser um objetivo de médio prazo para os vinte e poucos países centrais que já atingiram padrões de vida comparáveis ao do Canadá.

Claro, não será uma única pesquisa que poderá reduzir a inércia de convicções macroeconômicas consolidadas ao longo dos últimos 70 anos. O que também se aplica às conclusões ainda provisórias e incompletas da Comissão SSF (Stiglitz-Sen-Fitoussi), embora sejam bem menos subversivas do que a proposta de que as nações mais avançadas já procurem prosperar sem crescer. O rascunho rejeita o PIB como agulha magnética da bússola social, mas pretende ser pragmático.

Primeiro propõe cinco providências simultâneas:

a) usar outros indicadores bem estabelecidos na contabilidade nacional, principalmente a Renda Líquida Nacional Disponível em termos reais;

b) melhorar a aferição empírica de atividades-chave, como é o caso dos serviços de saúde e de educação;

c) adotar a perspectiva domiciliar, mais pertinente para padrões de vida;

d) adicionar informação sobre a distribuição de renda e de riqueza aos dados sobre suas evoluções médias; e

e) ampliar o escopo para incluir atividades que ocorrem fora dos mercados, por mais árduo que possa ser o trabalho de lhes imputar valores monetários.

Seguir esses cinco caminhos melhoraria muito a avaliação do desempenho econômico das nações, mas quase nada diria sobre a qualidade de vida que desfrutam suas populações. Para isso, a Comissão SSF reconhece a importância de medidas de caráter subjetivo, mas se inclina pela inevitabilidade de oito critérios objetivos: 1) saúde; 2) educação; 3) condições de trabalho e de vida; 4) influência política e governança; 5) conexões sociais; 6) condições ambientais; 7) insegurança pessoal, com destaques para criminalidade, acidentes e desastres naturais; 8) insegurança econômica, com destaques para desemprego, seguro-saúde, aposentadoria e pensões.

E como não é mais possível que a melhoria da qualidade de vida ignore seus limites ecológicos, a comissão apresentará em seu relatório final um enxuto painel integrado de indicadores (micro-dashboard) capaz de avaliar o excesso de pressão sobre os recursos naturais. Será uma medida ampla de riqueza baseada em estoques, na linha da "poupança genuína", ou "poupança líquida ajustada", proposta no relatório do Banco Mundial "Where is the Wealth of Nations" (2006).

É duvidoso que sejam essas as opções que orientarão o processo que inevitavelmente levará a razoáveis mensurações consorciadas do desenvolvimento e da sustentabilidade ambiental. Mesmo assim, já são suficientes para que se constate a precariedade do PIB e do IDH, além de ressaltarem a ausência de algum indicador legitimado de sustentabilidade ambiental. De resto, não poderá haver efetiva mudança da contabilidade social sem que surja antes, ou simultaneamente, sua correspondente teoria macroeconômica.

Para ler mais:


4 de jul. de 2009

Keynes previu 15 h de trabalho por semana

Em 1931, John Maynard Keynes publicou um curto ensaio intitulado "Possibilidades Econômicas para Nossos Netos". O comentário é de Hélio Schwartsman e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 04-07-2009.
Fonte: UNISINOS


É um texto estranho, no qual o homem que salvou o capitalismo da ruína chega muito perto de advogar pelo fim do trabalho e dos juros. O objetivo do opúsculo é combater a vaga de pessimismo com a perda de postos de trabalho provocada pela crise de 1929. Keynes espertamente "resolve" o problema lançando-o para o futuro longínquo.

De acordo com o economista, a combinação de acúmulo de capitais com desenvolvimento científico-tecnológico, embora possa produzir numa primeira etapa o chamado desemprego estrutural, significa também "a solução para o problema econômico da humanidade".

Keynes prognostica um aumento tão acentuado da produtividade que, no prazo de cem anos, estaríamos em vias de nos livrar da necessidade de trabalhar para satisfazer as necessidades básicas. Para o autor, lá por 2030 não teríamos de trabalhar mais que 15 horas semanais e dedicaríamos o restante do tempo ao lazer e à cultura.

Com isso - e é aqui que o texto fica mais intrigante-, ocorreria uma espécie de emancipação moral do homem: a acumulação de riquezas deixaria de ser percebida como algo importante e estaríamos livres para retornar a uma ética mais tradicional que condena a avareza, a usura e o amor pelo dinheiro.

Pragmático, porém, Keynes alerta: "Este tempo ainda não chegou. Por pelo mais um século, devemos fingir para nós mesmos e para os outros que o justo é injusto, e o injusto, justo; pois o injusto é útil, e o justo, não".

Durante muito tempo, esse texto foi tratado como um simples "divertissement", uma obra menor. Mais recentemente, entretanto, alguns economistas começaram a se perguntar por que o otimismo keynesiano não parece prestes a se materializar. As respostas que constam do livro "Revisiting Keynes" variam bastante.

Embora o pensador britânico tenha acertado em relação ao forte crescimento econômico, ele negligenciou a questão da distribuição da riqueza. Também parece ter superestimado o desejo das pessoas de deixar de trabalhar, mesmo quando podem fazê-lo.

Para ler mais:


Thomas Coutrot: Não se gera emprego sem distribuição equitativa da renda

“A crise global deixou óbvio o que os economistas críticos, marxistas ou keynesianos, vinham dizendo há anos: a globalização financeira favoreceu uma transferência maciça de riquezas em detrimento da classe trabalhadora e em prol das classes rentistas e, portanto, uma explosão das desigualdades.” A opinião é de Thomas Coutrot, economista francês, em entrevista exclusiva, realizada por e-mail, à IHU On-Line.

Thomas Coutrot é responsável pelo Departamento de Condições de Trabalho e Relações Profissionais – DARES. Participou da Fundação Copérnico e da Attac (Association pour la Taxation des Transactions pour l'Aide aux Citoyens/Associação pela Tributação das Transações Financeiras para ajuda aos Cidadãos), da qual é membro do conselho científico. É autor de, entre outros, Capitalisme ou démocratie (Paris: La Dispute, 2005) e Les conditions de travail des salariés après la réduction de leur temps de travail (Paris: Documents pour le Médecin du Travail, 2006).
Fonte: UNISINOS


IHU On-Line - Que tipo de transformações a atual crise internacional provoca nas condições de trabalho e nas relações profissionais?

Thomas Coutrot - Em todos os países do mundo estamos vendo, desde o final de 2008 ou início de 2009, uma explosão do desemprego. No entanto, falta recuo para termos uma visão internacional do efeito da crise global sobre as condições de trabalho e as relações profissionais. Isso depende muito dos contextos e das co-relações de forças nacionais. Na França, o que se vê é uma demissão em massa dos trabalhadores precários (trabalho interino e por duração determinada), e o crescimento do “desemprego parcial” nas grandes empresas: trata-se de uma redução do tempo de trabalho com indenização parcial paga pelo Estado. Nas construtoras de automóveis, por exemplo, os trabalhadores têm duas semanas de trabalho intenso e duas semanas de descanso forçado. Em vez de aproveitar a crise para diminuir a intensidade do trabalho, as empresas estão mantendo a pressão e depois mandam o pessoal ficar em casa sem dinheiro. Isso cria um ambiente muito ruim, de medo e rancor em muitas empresas. Em muitos casos, as empresas - geralmente transnacionais - decidem fechar uma fábrica, o que gera uma revolta muito grande entre os assalariados, um sentimento de injustiça e de desprezo. É comum ouvir desses trabalhadores frases do tipo: “suas contas bancárias engordaram durante anos graças a nosso trabalho e agora mandam a gente para o lixo”. Isso tem resultado em vários bossnappings, isto é, sequestros de dirigentes durante algumas horas por trabalhadores raivosos. O objetivo não é tanto impedir o fechamento da fábrica, mas conseguir uma indenização mais decente pelas demissões. A opinião pública apoia ou compreende esses atos de cólera e desespero. Os sindicatos têm convocado imensas manifestações (em janeiro, em março e no dia 1º de maio), com milhões de manifestantes na França inteira, para protestar contra o fraco desempenho do governo frente à crise. Mas, por enquanto, essas manifestações e movimentos não conseguiram mudar o rumo das coisas.

IHU On-Line - A partir da crise, podemos vislumbrar a emancipação da classe trabalhadora ou sua rendição ao capital?

Thomas Coutrot - Por enquanto, a classe trabalhadora está pagando um preço alto, especialmente as suas partes mais precarizadas (jovens, imigrantes, trabalhadores com contratos curtos...). Ela não tem conseguido se reunificar em torno de um projeto de resistência e muito menos de alternativas. Agora essa crise será longa e cheia de surpresas. Os trabalhadores têm uma oportunidade histórica de retomar o caminho das conquistas sociais e dos movimentos emancipatórios, se conseguirem tecer alianças orgânicas com outros movimentos sociais, especialmente com o movimento ecológico. O movimento “por uma outra globalização” e os Fóruns Mundiais Sociais têm essa função de tornar possíveis essas alianças em nível nacional, regional e mundial. Sua importância é cada vez mais decisiva, e eles têm que ultrapassar a função de “espaço de discussão” para se tornarem “espaços de coordenação e de organização”. Temos também que formular um projeto de emancipação para o século XXI, que possa servir de referência comum, de “gramática” para os movimentos sociais mundo afora, como a retórica socialista foi uma referência comum dos movimentos de emancipação nos séculos XIX e XX.

IHU On-Line - Que relações podemos estabelecer entre emprego e as desigualdades sociais?

Thomas Coutrot - A crise global deixou óbvio o que os economistas críticos, marxistas ou keynesianos, vinham dizendo há anos: a globalização financeira favoreceu uma transferência maciça de riquezas em detrimento da classe trabalhadora e em prol das classes rentistas e, portanto, uma explosão das desigualdades. Isso resultou em um aumento extraordinário do endividamento dos consumidores, para tornar possível o aumento do consumo (incluindo casas), e a manutenção do crescimento econômico. Isso só podia acabar com uma correção severa. Então, o crescimento desigual e a geração de empregos precários, que foram as marcas registradas da época neoliberal, agora se acabaram. Resultado: temos um empobrecimento geral com uma explosão do desemprego. Isso só comprova o que já sabíamos: a longo prazo não se gera emprego sem distribuição equitativa da renda.

IHU On-Line - O senhor defende que a política econômica não está voltada para a geração de emprego e renda no Brasil. Em que baseia sua posição?

Thomas Coutrot - A política econômica do governo Lula foi baseada principalmente na exportação de produtos primários (agricultura e mineração). Isso gerou emprego e renda enquanto os mercados internacionais estavam exuberantes, mas repousava em bases muito frágeis, tanto economicamente como ecologicamente, como o vemos agora. As políticas compensatórias (como o Bolsa Família) e o aumento real do salário mínimo foram medidas positivas, mas insuficientes em si para pautar um crescimento econômico sustentável. O Brasil está pagando um preço alto por ter apoiado seu crescimento principalmente da demanda externa.

IHU On-Line - O que faria parte de uma mudança radical de rumo no caso brasileiro?

Thomas Coutrot - Uma mudança radical de política econômica incluiria um enfoque muito forte sobre a Reforma Agrária, de maneira a diminuir drasticamente ou até reverter os fluxos migratórios do campo para a cidade. Trata-se de privilegiar a agricultura familiar sustentável, contra a grande agricultura capitalista ecologicamente e socialmente irresponsável. Isso implicaria, portanto, um confronto com o latifúndio e o agronegócio, e uma mobilização popular muito forte. Precisaria também de um aumento rápido do salário mínimo para dar sustentação a um crescimento da demanda interna por bens de consumo e alojamentos, junto com uma reforma fiscal progressista, que redistribuísse renda e permitisse o financiamento dos gastos sociais e dos investimentos ambientais. Se o Brasil liderasse uma aliança regional com outros países da América do Sul para desenvolver políticas econômicas e sociais progressistas, pautadas na mobilização popular, teria uma imensa repercussão internacional.

IHU On-Line - O senhor pensa que o Brasil deveria adotar o controle de capitais, para evitar a instabilidade financeira? Em que sentido essa medida afetaria a questão do trabalho?

Thomas Coutrot - Obviamente uma política econômica progressista não agradaria aos investidores financeiros. Portanto, há necessidade de estabelecer um controle de entrada e saída de capitais, bem como uma redução drástica da taxa de juros interna. A comissão Stiglitz das Nações Unidas tem apontado que a liberalização dos sistemas financeiros nos países do Sul tem tido um papel central na sua fragilização. O Brasil não precisa de capital especulativo para crescer. Ele tem toda a latitude para desenvolver um sistema de crédito bancário nacional e internacional (como o Banco do Sul) voltado para o financiamento a longo prazo de projetos socialmente e ecologicamente prioritários.

IHU On-Line - Como a questão do trabalho e do emprego são debatidas entre os membros da Attac? Quais seriam os principais desafios para os próximos anos nessa área?

Thomas Coutrot - Achamos que a questão da redução da jornada de trabalho tem de ser recuperada com muita urgência para enfrentar as consequências da crise global. Reduzir a jornada, sem reduzir salários, mas com incentivos fiscais, financiados por uma reforma fiscal que bata forte nos rendimentos financeiros, é algo que nos parece uma política de emprego e renda ao mesmo tempo justa e eficiente. Agora, não se pode esperar tudo do Estado e dos governos, inclusive porque a esquerda, pelo menos na Europa, está muito desorientada e sem rumos, e longe de apresentar alternativas reais. Então, os movimentos sociais precisam ser criativos, para mostrar outras maneiras de se fazer economia. É por isso que as realizações e as conquistas da economia solidária são tão importantes politicamente, e espero que elas venham a crescer com força nos próximos anos, como uma resposta autônoma e criativa dos movimentos sociais frente à crise e ao esgotamento do capitalismo. Precisamos partir para a construção de alternativas, democráticas e solidárias, como cooperativas, comércio justo e finança solidária, por exemplo.

Outras leituras:

Mario Fleig: O direito ao gozo e a violência
Jean-Pierre Lebrun: O Outro, o ódio, a linguagem e a violência
José Zuberman: O parricídio no Dostoiévski de Freud. Uma leitura psicanalítica
Ivan Correa: “A função da cultura é atenuar nossa violência e mantê-la sob controle”
Rosane de Abreu e Silva : A violência é constitutiva do ser humano e determina a sua subjetividade
Margareth Kuhn Martta: Angústia e violência: um paradoxo contemporâneo
Conceição Fleig : A angústia como fonte da delinquência juvenil
Desejo e violência

1 de jul. de 2009

O mundo em recessão negligencia a crise alimentar

Na Reunião do G-8 de L’Aquila, de 8 a 10 de julho na Itália, a segurança alimentar estará outra vez em pauta. Mas, finalmente, o tema será levado a sério? A reportagem é de Laetitia Clavreul e Adrien de Tricornot e está publicada no jornal francês Le Monde, 30-06-2009. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS

“De reunião em reunião, assistimos a grandes declarações sobre a fome, e são feitas promessas de doações. Mas não há nem seguimento nem sanções”, deplora Olivier de Schutter, relator especial da ONU sobre o Direito à Alimentação.

Há um ano, de 3 a 6 de junho, uma “conferência de alto nível sobre a segurança alimentar mundial” foi realizada na sede da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação em Roma e reuniu 42 chefes de Estado e de governo. Foram prometidos 22 bilhões de dólares em ajudas. A declaração final julgava “urgente” a ajuda aos países em desenvolvimento e em transição para investirem mais e desenvolverem a sua produção agrícola e alimentar. Mas, apenas 2,5 bilhões de dólares foram efetivamente alocados até hoje.

Uma parte das promessas foi, certamente, escalonada para cinco anos e outra parte sofre de crônica imprecisão. Mas muitos compromissos estão suspensos, uma vez que a crise financeira prevaleceu. Mas bastaria menos de um centésimo das somas consagradas aos planos de retomada do crescimento e de salvamento de bancos...

Hoje é importante destacar que o tempo das palavras acabou”, disse Jacques Diouf, diretor-geral da FAO, no começo de junho comentando a crise alimentar no Fórum Mundial de Cereais em São Petersburgo. Suas palavras são o sinal de que muito poucas decisões concretas foram tomadas para retomar a agricultura dos países pobres ou para regular melhor os mercados.

Os preços globais recuaram depois de boas safras e os “tumultos da fome” se distanciaram. Mas a crise econômica golpeia ainda mais duramente. Em 2009, o número de pessoas com fome deverá passar de um bilhão, segundo a FAO.

Apesar das boas intenções anunciadas, a agricultura sofre para tornar-se uma prioridade. A parte de ajuda pública para o desenvolvimento que lhe é consagrada foi dividida por mais de cinco em 25 anos, passando de 18,1%, em 1979, para 3,5%, em 2004, lembraram as coalizões italianas de Ongs e a CCFD Terra Solidária em abril, por ocasião da reunião dos Ministros da Agricultura do G-8. Essas organizações exigem o retorno ao nível de 30 anos atrás.

A questão agrícola depende de três Agências da ONU – Programa Alimentar Mundial (PAM), FAO e Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola –, assim como da Organização Mundial do Comércio, o que dificulta a sua condução.

Além disso, os Estados sofrem para superar os seus interesses divergentes. Em plena crise, em 2008, não foi possível haver entendimento sobre questões chaves, como os biocombustíveis, ou as subvenções agrícolas do Norte que desestruturam a agricultura familiar do Sul. Desde então, o debate não avançou. Houve, isso sim, consenso sobre os erros do passado, com a denúncia da dependência crescente dos países em desenvolvimento em relação aos mercados agrícolas mundiais.

Seguindo as políticas estruturais ditadas pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional nos anos 1990, os países em desenvolvimento abandonaram as culturas de subsistência pela cultura e exportação de algodão, café ou outros produtos tropicais, e sofreram em cheio, vinte anos depois, a explosão das cotizações dos produtos alimentares. Todos estão, pois, de acordo sobre a necessidade de apoiar a agricultura camponesa... sem, contudo, oferecer os meios.

Outros assuntos mais importantes continuam sendo debatidos, tais como a liberalização das trocas ou a regulação dos mercados. Sobre esse ponto, a crise financeira deu a esperança de que a reflexão prosseguirá. O assunto deverá ser evocado em L’Aquila. Mas ninguém garante que haverá progressos. “Cenários são propostos e a vontade política deve prosseguir a partir de agora”, insiste De Schutter.

Uma proposta feita pelo Instituto de Pesquisa International Food Policy Research Institute (IFPRI) de Nova York, com o economista-chefe do Banco Mundial Justin Lin, evoca assim três linhas de defesa diante de uma explosão dos preços dos alimentos como aquela de 2008: por um lado, uma reserva alimentar de urgência, independente, poderia ser criada e confiada ao PAM.

Em seguida, um sistema internacional de estoques públicos de cereais, sob o auspício da ONU, poderia ser implantado para alimentar o mercado em caso de desequilíbrio.

Enfim, os países participantes se comprometeriam também com a constituição de uma reserva financeira que permitisse intervir nos mercados derivados agrícolas em caso de explosão dos preços devido à especulação.

Os autores destas propostas destacam que elas completariam as outras reformas necessárias dos mercados agrícolas: evitar as proibições de exportações às quais tiveram que recorrer alguns países em 2008, regular melhor os mercados físicos e os mercados derivados. Mas resta muito a fazer: um relatório de pesquisa bipartidário do Senado norte-americano, publicado no dia 24 de junho e intitulado Especulação excessiva sobre o mercado do trigo, recomenda enquadrar melhor as atividades dos Fundos que investem nos índices de matérias-primas.

Mas, no final das contas, muito poucas reformas e ações já foram realizadas, num momento em que é urgente agir. “O que nós vivemos em 2008 deve ser tomado como alarme”, lembra Abdolreza Abbassian, economista da FAO. No começo de junho, a Agência anunciou que mesmo que “as ofertas alimentares mundiais parecem menos vulneráveis aos choques do que no ano passado”, subsistem “potenciais perigos”.

Assim, se devemos nos alegrar com uma produção mundial recorde que permite a reconstituição dos estoques, é preciso notar que ela vem dos países ricos e não dos países em desenvolvimento importadores, porque não tiveram os recursos para investir em adubos ou transformar terras em cultura.

Os países pobres, e especialmente os africanos, não dispõem dos recursos para implementar políticas agrícolas, ou simplesmente para que os agricultores possam participar do mercado. Por falta de silos, eles não podem estocar sua produção para vendê-la a um preço melhor; na falta de estradas ou de vias férreas, não podem enviar a sua produção aos lugares de venda. O problema é conhecido, mas os investimentos para resolvê-lo não são financiados.

Portanto, a crise funcionou como um alarme em alguns países ricos em capital, mas pobres em terra e em água – como os Estados do Golfo –, ou cuja população é numerosa – como a Índia, a China e a Coreia do Sul. Testemunham-no o fenômeno da compra de terras no exterior que está se ampliando. Estes Estados desejam, com efeito, garantir por esse viés seu fornecimento de arroz, milho ou de óleo de palma.

A situação dos países pobres é inquietante. Os Objetivos do Milênio – redução pela metade do número de pessoas que sofrem de subalimentação até 2015 – tinham sido reafirmados na reunião de Roma, em junho de 2008. Agora, calcula Diouf, eles não são “mais realistas”. “Um mundo esfomeado é um mundo perigoso”, prevê Josette Sheeran, diretora do PAM. A tomada de consciência já não é mais suficiente.