30 de dez. de 2009

MST: Balanço e desafios para um novo ano

Final de ano é momento de fazer balanço das atividades do período que passou, avaliar os avanços e as dificuldades encontradas e começar a planejar o ano que vem chegando.

2009 vai ficar marcado na história como o ano da grande crise capitalista que assolou os mercados financeiros de todo mundo. Crise que se iniciou nos EUA, mas varreu vários países, ricos e pobres, quebrando bolsas, bancos, empresas e, sobretudo, desmoronou a hegemonia ideológica das certezas dos grandes capitalistas no seu deus Mercado, o chamado neoliberalismo.

Tivemos a triste notícia que, segundo a ONU, o número de famintos já passa de 1 bilhão de pessoas, ou seja, a cada seis pessoas uma passa fome em alguma parte do mundo. Houve ainda um aumento da concentração da riqueza e renda em todo planeta, globalizado pelo jeito capitalista de funcionar.

A derrubada das florestas pelo agronegócio e a grande quantidade de carros produzidos no último período para salvar a crise têm agravado ainda mais os problemas ambientais, obrigando o mundo a debater o aquecimento global e suas consequências para a humanidade. Além disso, a pecuária intensiva e o modelo produtivo do agronegócio, - que se baseia no uso abusivo de máquinas e venenos agrícolas - aumentaram o desequilíbrio ambiental no meio rural.

Todos esperávamos que os chefes de Estado compreendessem a gravidade da situação e que em Copenhague assinassem um compromisso de recuperação da Terra. Triste engano. Os governos dos países responsáveis pelos maiores desequilíbrios continuam iguais, cada vez mais insensatos e irresponsáveis. Afinal não querem mudar seu padrão de consumo, nem seus privilégios, pagos por toda humanidade. Como bem avaliaram a Via Campesina internacional e os movimentos ambientalistas: só a mobilização popular pode agora salvar a vida no planeta.

No Brasil, o ano foi marcado por debates importantes, como a questão das reservas do petróleo no pré-sal, que pode mudar o rumo da economia e dos problemas sociais; a atualização dos índices de produtividade, promessa assumida pelo governo Lula desde maio de 2005, que poderia acelerar a Reforma Agrária; e a redução da jornada de trabalho para 40 horas, pauta antiga dos trabalhadores, agora assumida por todas as centrais sindicais.

Também tivemos um ano marcado pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. Temos visto em diversos governos estaduais, que o Estado continua com posições reacionárias, judicializando os problemas sociais e criminalizando os movimentos que organizam as lutas e batalhas de resistência nas comunidades pobres das grandes cidades e do campo. O MST pagou caro, perdemos o companheiro Elton Brum, assassinado pela Brigada Militar gaúcha. E tivemos vários mandatos de prisões contra nossas lideranças.

Na luta política, a direita brasileira ampliou sua presença nos espaços que detêm hegemonia, como o Poder Judiciário, transformando o presidente do STF em mero porta-voz de seus interesses. No Congresso Nacional, além dos inúmeros casos de corrupção, a direita aumentou a ofensiva com projetos de lei que caminham na contra-mão da história, como tentativas de apropriação da Amazônia, mudanças no Código Florestal e a intenção de liberar completamente o uso e comercialização de venenos agrícolas e sementes transgênicas.

Na Reforma Agrária

Fizemos grandes jornadas de lutas cobrando o cumprimento da Reforma Agrária, em abril e agosto, mas mais uma vez fechamos o ano com poucos avanços para a Reforma Agrária. Estima-se que foram assentadas menos de 20 mil famílias, ou seja, apenas 20% da meta proposta pelo proprio Incra, de 100 mil famílias por ano. Mais de 96 mil famílias continuam acampadas, em sua maioria há mais de três anos debaixo de um barraco de lona.

Tivemos algumas melhorias nos assentamentos, como a expansão da energia elétrica, água encanada, moradia e infra-estrutura. No entanto, não houve avanços em uma questão central para o desenvolvimento dos assentamentos: a implementação de agroindústrias cooperativadas, a universalização do atendimento público de assistência técnica e uma política de crédito rural adequada aos assentados. O Pronaf tem se mostrado insuficiente para resolver os problemas dos assentados, mesmo aumentando o volume do crédito. Essa situação dificulta o aumento da renda das famílias.

Diante desse balanço, nosso papel prioritário é seguir organizando os trabalhadores para garantir o assentamento das famílias acampadas e melhorar as condições de vida das famílias já assentadas, avançando no debate e na implementação de uma Reforma Agrária popular.

Desafios para 2010

2010 nos exige o enfrentamento de muitos desafios, desde a luta geral por mudanças na politica até na luta por Reforma Agrária.

Precisamos consolidar alianças com setores do movimento social e sindical do meio urbano, já que os desafios são grandes, e exigem a mobilização de toda classe. Os temas agrários também se resolvem com a mobilização de toda classe, para alterar a atual correlação de forças politicas. Precisamos contribuir na organização, junto com as pastorais sociais, Assembléia Popular e Coordenação de Movimentos Sociais, para realização de um plebiscito pelo limite máximo da propriedade da terra no Brasil. Buscaremos também fortalecer a luta pela redução da jornada de trabalho e seguir pautando, denunciando e enfrentando a criminalização dos movimentos sociais, além de lutar para garantir que o petróleo do pré-sal pertença de fato ao povo e seus recursos sejam destinados para o combate à pobreza e investimento na educação e na saúde da população brasileira.

O próximo ano terá o desafio das eleições e, mesmo sabendo das limitações da democracia representativa burguesa, entendemos que é importante aproveitar esse momento, em que a população se envolve no pleito, para fazer um grande debate. É momento oportuno para discutir os problemas sociais e estruturais do país e pautar a necessidade da construção de um projeto popular para o Brasil. Precisamos votar nos candidatos socialistas e progressistas, comprometidos com a Reforma Agrária, e não deixar que candidaturas de direita se elejam com votos dos trabalhadores.

O Brasil precisa mostrar ao mundo no próximo período que, mais do que ser o país das Olimpíadas ou da Copa, precisa ser um país de justiça social, para todos os seus cidadãos. Um país sem analfabetos e símbolo da produção agroecológica. Um país onde não haja mais concentração de terra, nem de renda. É esse o país que desejamos a todas e todos em 2010.
[grifos do blog]

22 de dez. de 2009

''Reforma agrária deve ser entendida em forma ampla'', defende D. Tomás Balduíno

Próximo de completar 87 anos, dom Tomás Balduíno é o eterno ideólogo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e referência intelectual dos movimentos pró-reforma agrária. O bispo considera superado o atual modelo de assentamento de camponeses, com a distribuição de lotes individuais para cada família. A proposta se parece com os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) defendidos pela freira americana Dorothy Stang, morta há quatro anos por pistoleiros no Pará. “A reforma agrária deve ser entendida em uma forma ampla. Não é aquela que divide o chão, mas a que inclui o posicionamento das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos quilombolas e até dos indígenas que têm um relacionamento sui generis com a terra”, defende o religioso.
Fonte: UNISINOS


Por que a CPT defende um novo estágio no programa de reforma agrária do governo?

A reforma agrária deve ser entendida de uma forma ampla. Não é aquela que divide o chão, mas a que inclui o posicionamento das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos quilombolas e até dos indígenas que têm um relacionamento sui generis com a terra. Em resumo, a terra para quem dela precisa para viver, trabalhar e conviver. Esse é o objetivo social. O outro, mais ecológico, é no sentido de preservar o bioma amazônico e, ao mesmo tempo, todos os biomas do país que estão ameaçados pelo agronegócio. O atlas deste país revela que onde houve devastação é onde se implantou o agronegócio. As áreas indígenas, camponesas e quilombolas são as mais preservadas. Ao invés de estimular com subsídios, com grandes verbas o agronegócio, o governo deveria apoiar e defender as organizações populares na linha da convivência com a terra. Sobretudo com o bioma amazônico, que é o responsável pelo equilíbrio planetário, pela própria estabilidade do planeta em termos climáticos.

Para onde a reforma agrária, na sua opinião, deveria caminhar?

Nós estamos superando cada vez mais a ideia burocrática de uma reforma agrária que divide em quinhões a terra. Não é isso que é o conceito amplo de reforma agrária. Defendemos um novo estágio nesse processo. O consenso que vem vindo é na linha da soberania territorial e alimentar. Até uma reforma agrária na base da concessão territorial, em vez de cessão ou venda da terra — o que faria continuar o mesmo modelo de dividir o solo por famílias e depois pulverizar pelos herdeiros, o que pode fortalecer de novo o latifúndio.

O modelo que o senhor defende é diferente não só do que vem sendo aplicado pelo governo, mas até do que defendem alguns setores dos movimentos pró-reforma agrária…

Já houve tentativa de se consolidar e se estruturar esse novo modelo. Mas há muita resistência das bases populares. O pessoal quer o próprio chão. Mas acho que os exemplos dos povos tradicionais são os que mais realizaram a melhor convivência com a mãe terra, que são os indígenas, os negros, os quilombolas. Não é propriedade do negro fulano ou do cacique tal ou qual, mas a terra indígena e quilobola. É isso que está influindo no novo conceito ampliado de reforma agrária. Não tem ainda uma cartilha ou um livro destrinchando esses conceito que estou falando porque ele está em formação.

Esse modelo parece com o modelo que a irmã Dorothy Stang tentava implantar no Pará quando foi morta?

Está nessa linha. Mas, sobretudo, na linha que inspira os movimentos ambientalistas que reformam o modo de ser camponês, e o que prevalece nas defesas de movimentos como o Via Campesina e outros movimentos camponeses em nível internacional.

Há uma crítica muito forte à reforma agrária, dizendo que não há qualidade de produção nos assentamentos. Existe incompatibilidade entre a concessão coletiva e a produtividade?

Não se pode dizer isso, porque não há esse modelo ainda implantado. O que há são as reservas indígenas que não visam a produção. O objetivo do modelo de reforma agrária não é o lucro, não é o capital, apesar de não excluir a produção. Vemos muitas vezes que a produção coletivista é melhor que a capitalista quando tem todos os recursos necessários para isso. A fábrica de leite do MST nada deve a qualquer organização capitalista. De certa maneira, tem melhor qualidade. Nós queremos, em primeiro lugar, a dignidade dessas populações assentadas. A estatística mostra que quem alimenta a mesa do brasileiro é o pequeno produtor.

O programa de reforma agrária já enfrenta muita resistência no parlamento, no governo, na Justiça. Um projeto coletivista não vai complicar ainda mais a implantação?

Seria se fosse o único, se fosse impositivo, se fosse ou isso, ou nada. Mas é uma proposta entre outras. Inclusive com a de conviver com a terra que é de propriedade do pequeno produtor. É uma questão de justiça social.

Reforma agrária, falácias e preconceitos

"Os dados apontam o avanço da democratização do acesso à terra, tarefa obrigatória de todo país. É o caminho que buscamos", escreve Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 06-04-2009.
Fonte: UNISINOS



O professor Zander Navarro escreveu um artigo surpreendente decretando que as políticas de reforma agrária são irracionais e desapareceram da agenda dos debates sobre desenvolvimento. A surpresa fica por conta do alto grau de desinformação expresso no texto de um pesquisador ligado à área do desenvolvimento rural.

Navarro faz denúncias genéricas sem apresentar um só dado para sustentar suas posições. E aponta uma suposta interdição do debate, atacando colegas pesquisadores.

O que fica evidente na sequência de ataques disfarçados de argumentos é que o olhar do autor é que parece estar fora do debate. Ele procura fazer da desinformação uma virtude e mal consegue disfarçar seu preconceito ideológico em relação a um problema histórico do Brasil.

Essa mistura de desinformação e preconceito aparece, por exemplo, quando reclama que o Brasil é o único país que ainda realiza reforma agrária. O que não diz é que isso ocorre porque nossa elite urbana e rural nunca permitiu que ela fosse feita antes. A esmagadora maioria dos países enfrentou esse tema ainda no século 19 ou no início do século 20. É sintomático que a resistência expressa no artigo seja maior em países como Brasil, ainda marcados por profundas desigualdades sociais.

Também é sintomático que os adversários da reforma agrária separem essa agenda do debate sobre o modelo de desenvolvimento rural dominante nas últimas décadas. Um modelo que empurrou milhares de pessoas para as periferias pobres das grandes cidades e trouxe graves problemas ambientais.

Desde os anos 1970, as políticas voltadas para a agricultura obedeceram a uma lógica específica de modernização tecnológica. Por meio dela, procurou-se aumentar a produtividade da força do trabalho empregada no cultivo e na criação de animais mediante o uso de tecnologias que substituíram o trabalho humano pelo emprego intensivo de máquinas e insumos. Essa concepção favoreceu o monocultivo em grandes extensões de terra.

A combinação de uma estrutura agrária concentrada, políticas agrícolas e padrão tecnológico excludentes gerou o empobrecimento de milhares de famílias de pequenos e médios agricultores, a perda de biodiversidade e a contaminação de rios e pessoas pelo uso intensivo de agrotóxicos.

É curioso que Navarro reclame de uma suposta "interdição" do debate e proponha exatamente isso. A proposta não é nova. Em 1992, a FAO foi pressionada pelos EUA para retirar o tema da reforma agrária de sua agenda. Essa pressão se deu no contexto da hegemonia das políticas do chamado Consenso de Washington.

Na América Latina, a maioria dos países adotou esse receituário com resultados desastrosos. Duas décadas depois, esse modelo que se reivindicava como porta-voz da modernidade acabou mergulhando o mundo em uma crise gravíssima. Se há algum debate interditado é sobre essa história que muitos hoje tentam sepultar.

O governo brasileiro, com o apoio de organismos internacionais como a FAO, está debatendo propostas para um novo padrão de desenvolvimento rural. Em 2006, após 27 anos de silêncio sobre o tema, foi realizada em Porto Alegre a segunda Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural. Em junho de 2008, realizamos a primeira Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, em Olinda. Esses debates, com ampla participação de agricultores, quilombolas, povos indígenas e suas entidades, estão ajudando na implementação de políticas de combate à pobreza no campo e de construção de um rural com gente, trabalho e renda.

O Brasil já contabiliza 43 milhões de hectares destinados à reforma agrária nos últimos seis anos, dado que o transforma no país com a maior área de assentamentos em todo o mundo. De 2003 a 2008, 519.111 famílias foram assentadas e 3.089 assentamentos foram implantados.

Segundo dados preliminares do Censo Agropecuário 2006, houve um aumento do número de estabelecimentos rurais nos últimos dez anos, passando de 4.859.865 para 5.204.130, um crescimento de 7,1%.

Os dados apontam o avanço da democratização do acesso à terra, uma tarefa obrigatória de qualquer país, assim como a escolha de uma forma de desenvolvimento capaz de fazer do campo um espaço de paz, produção e justiça social, incompatível com práticas como o trabalho escravo e a destruição do meio ambiente. Esse é o caminho que estamos buscando, não o de arautos de uma falsa modernidade que se perderam no tempo e não conseguem mais definir quem são nem para onde vão.

A reforma agrária e o MST, entre teses destrutivas e os direitos que cabem às/os sem-terra

Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin comentam o debate, travado no jornal Folha de S. Paulo, sobre a reforma agrária, entre Zander Navarro e Plínio de Arruda Sampaio. Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.

Fonte: UNISINOS


As opiniões de Zander Navarro e de Plinio de Arruda Sampaio, publicadas na Folha de São Paulo, dia 5 deste mês, a primeira contrária e a segunda a favor da reforma agrária, continuam repercutindo. Já foram analisadas, inclusive pelo Ministro de Desenvolvimento Agrário. Já que a atuação do MST aparece em todas elas como um elemento-chave a ser levado em conta, vale a pena considerar-se o que ficou dito, igualmente, contra e a favor dele.

Zander baseado em seus estudos, como refere no início do seu texto, defendeu nada menos do que treze teses de impugnação da causa, da ideologia, do método de arregimentação dos seus integrantes, da forma como são liderados, e do modo como esse movimento age. Negou que ele seja vítima de criminalização; denunciou, como um dos seus maiores defeitos, o caráter não institucional de que ele se reveste, não lhe reconhecendo, sequer, continuar sendo um Movimento Popular. Dá uma aula sobre o que ele acha que o MST é, e não hesita em dizer como ele deveria ser.

Plínio, ao contrário, preferiu analisar o MST, baseado em fatos e, no que mais interessava ao tema proposto pela Folha, no uso e na exploração da terra. Não ignorou o contexto histórico da realidade hostil e opressiva a que está submetido o povo sem-terra, em nosso país; criticou os poderes públicos, de forma particular o da União, pela preferência que adotou em relação ao nosso modelo agrícola; sublinhou o poder decisivo das transnacionais sobre o campo brasileiro (soja, álcool de cana, carne, madeiras); lamentou a extensão da grilagem (agora legalizada) das terras da Amazônia, o destino suspeito de transposição do Rio São Francisco, as vantagens inerentes à consolidação da agricultura familiar. Identificou o MST como um movimento socialista, impugnando, em números, a versão corrente sobre o que aconteceu na Fazenda Cutrale; conclamou vários atores sociais a se empenharem em favor da reforma agrária até para exigir do Judiciário maior rapidez nas desapropriações e fiscalização das violências praticadas contra as/os sem-terra nas ações de reintegração de posse.

A simples comparação das idéias aí em aberto conflito, parece indicar que a primeira é muito mais acadêmica, teórica e subjetiva do que a segunda. Para Zander o que o MST é, destoa do modelo que a sociologia (ele também, por óbvio) indica que esse Movimento deva obedecer. Para Plinio, o que o MST é, revela simplesmente uma forma de organização social necessária à defesa do povo sem-terra e da reforma agrária.

Desde logo, um primeiro questionamento se impõe à leitura dos dois artigos. O que é mais importante? A conformidade exigida pelo modelo teórico, acadêmico, “científico(?)”, previamente receitado na bula da primeira perspectiva, ou o remédio urgente e necessário de que carece uma doença social grave, vitimando multidões pobres que padecem, historicamente, de desrespeito?

Se as duas opiniões forem testadas à luz dos objetivos da reforma agrária, dos direitos humanos fundamentais do povo sem-terra, e até do modelo que temos de Estado democrático de direito, no Brasil, as treze teses de Zander sofrem de uma auto-suficiência incompatível até com a ciência da qual ele se socorre.

Nem é muito difícil se provar esse fato, podendo se dispensar aqui, até o grau de desigualdade dos serviços que ao povo sem-terra prestaram um e outro dos autores que assinam os artigos publicados pela Folha.

Zander insiste bastante no fato de que um dos maiores defeitos do MST consiste em ele se encontrar à margem da institucionalidade; verbera a circunstância de, usando esse Movimento recursos públicos, os Poderes responsáveis por tais recursos não cobrarem essa institucionalidade, já que com ela, num regime democrático, o MST “obteria alguma tolerância pública.” Ele qualifica como ridícula, por isso mesmo, entre outras razões, a queixa das/os sem-terra relativa à criminalização orquestrada e indiscriminada, no país e no Rio Grande do Sul, contra elas/es; entende que a reforma agrária deve alcançar, se alcançar, apenas o nordeste brasileiro.

Além do desconhecimento que o autor revela aí, do que a Constituição Federal e as leis do país dispõem a respeito da liberdade que o povo, ou parcela dele tem, de se associar, com personalidade jurídica, ou não, algumas contradições do seu libelo contra o MST acabam por desautorizar toda a sua crítica.

A começar por um princípio jurídico elementar, respeitado mais por sua obviedade do que pela sua previsão legal (art. 476 do código civil), a ninguém cabe exigir o cumprimento de uma obrigação inserta num contrato, enquanto não cumprir, por sua parte, a obrigação a que se vinculou. A Instituição Estado brasileiro está em mora no cumprimento das suas obrigações para com o povo sem-terra desde que esse país, mal ou bem, foi reconhecido como nação independente no mundo todo. Se não cumpre a obrigação que lhe cabe, que direito lhe assiste de exigir o cumprimento da “obrigação” de suas/seus cidadãs/os?

Outra analogia bem próxima do tema que nos ocupa aqui, pode ser conferida na conduta dos latifundiários brasileiros que, mesmo descumprindo com a sua obrigação de respeitar a função social inerente ao seu direito de propriedade rural, condenam o MST, assim como faz o Zander, por ele não cumprir a “obrigação(?)” de se institucionalizar. Desde o evangelho, todo o mundo sabe que quem tem uma trave no próprio olho não pode censurar o argueiro que se encontra no olho alheio.

Ora, institucionalizado ou não, é justamente pela iniciativa das instituições públicas e as privadas vinculadas aos latifundiários, que as/os agricultoras/es sem-terra, filiadas/os ou não ao MST, têm sofrido historicamente de uma repressão judicial e policial-militar tão duras, ou mais, do que as que sofreram na época da ditadura. E isso, em pleno exercício do modelo de “democracia” que o Zander defende, ou seja, aquele que em vez de respeitar e promover a organização popular lhe outorga (como favor talvez?), “alguma tolerância”.

Como uma democracia a esse nível tem legitimidade ou autoridade ético-jurídica para exigir “institucionalização” de qualquer movimento popular, esse autor não explica, como nem deixa muito claro de resto, o que ele entende por institucionalidade.

Assim, uma primeira e fundamental contradição do seu raciocínio reside nisso. Ele acaba por justificar a ausência de personalidade jurídica, a ausência de um CNPJ para o MST, não só pelo fato de latifundiários e Poder Público descumprirem suas obrigações para com o povo sem-terra, como pelo tipo de democracia que ambos, mais ele, entendam contemplar esse povo; essa espécie de “democracia(?)” já na democracia autêntica aí nem existe. É até bem melhor que o Movimento se defenda desse tipo original de “regime” jurídico-político desenhado pelo autor, tentando quando menos denunciar o quanto há, aí sim, de “intolerável” autoritarismo nesse arremedo de obediência à soberania do povo (art. 1º parágrafo único da Constituição Federal).

Nem seria necessário lembrar, a propósito, que a democracia, para valer, a história o comprova, nasce quase sempre depois de o povo sofrer e até morrer por se insubordinar, exatamente, contra os poderes da “instituição” legalizada dos regimes anteriores. Quem não sabe, ou até viola, o sentido e as referências do que seja instituição, e instituição democrática, não pode exigir que outros se “institucionalizem”.

Ignorando, também, que o poder constituinte do povo não morre, durante a vigência do constituído, o autor reserva para os movimentos populares, exigindo-lhes o que ele entende por institucionalidade, apenas o poder regulatório próprio das Constituições e das leis, castrando todo o poder emancipatório que elas contêm, um vício nada moderno, conservador e até reacionário, como Boaventura de Sousa Santos tem demonstrado, em lições bem menos reducionistas do que a do sociólogo contrário à reforma agrária e ao MST.

A manipulação vergonhosa desse poder regulatório tem sido responsável por não poucas violações dos direitos humanos do povo sem-terra e por muitos prejuízos às organizações populares que o apóiam. A violência e a desonestidade com que a bancada ruralista impôs à Constituição Federal a expressão “propriedade produtiva” no art. 185, inc II da Constituição Federal, como José Gomes da Silva historiou em detalhes na sua obra “O buraco negro”, dá bem um exemplo “institucional” disso. O relatório original da CPMI da terra, igualmente, todo ele feito de apoio à reforma agrária, foi substituído por outro, ao feitio e ao interesse exclusivo daquela bancada, que convenceu a “instituição” Tribunal de Contas da União que toda e qualquer ONG, pessoa jurídica pública ou privada, que apoiasse financeiramente o MST, era suspeita de corrupção ou desvio de dinheiro. Pura mesmo, só aquela bancada, caloteira histórica de dívidas tributárias, defensora de grilagens e de todo o tipo de depredação da terra e de dominação de gente no campo, capaz de obstruir até a votação de projetos contrários ao trabalho escravo.

Assim, a ausência de “institucionalidade” do MST, não impediu e nem continua impedindo que as pessoas jurídicas afinadas com os objetivos e a ação da Movimento, possam prosseguir celebrando convênios, participando de licitações, obtendo fundos, sejam públicos ou privados, com que ajudavam o MST. Imobilizadas durante meses por fiscalizações de órgãos públicos, têm de desviar toda a sua atenção para responder questionamentos que concluem aberrações do tipo diminuição do valor de diárias (em mais de metade, às vezes) devidas a alunas/os filhas/os de sem-terra, em suas escolas, pelo fato de, por serem pobres, “estarem habituadas com pouco”...

Se isso acontece com pessoas jurídicas “institucionalizadas”, conforme o modelo zanderiano, o que não ocorreria com o MST se ele entrasse em tal armadilha?

Surpreende, por outro lado, numa época em que se estuda e questiona tanto o controle social, a democracia econômica e participativa, como características próprias de um Estado verdadeiramente democrático e de direito, pretender-se enfiar o barrete rígido da institucionalidade justamente num Movimento Popular que goza do prestígio e da companhia atuante de grande parte de personalidades que integram, ou não, pessoas jurídicas públicas e privadas “institucionalizadas” que, não pela informalidade dele, deixam de apoiar e auxiliar em suas iniciativas, exatamente nos momentos em que ele mais sofre de agressão aos direitos humanos de suas/seus integrantes.

Sua militância encontra apoio em outros testemunhos históricos e muito qualificados de defesa das/os sem-terra como a de dezenas de ONGs do Brasil e do mundo, Comissões de direitos humanos, CDDPH (Conselho de defesa dos direitos da pessoa humana), CPT, ADJ (Associação de Juízes para a democracia) Dom Pedro Casaldaliga, Dom Tomas Balduino, Fabio Konder Comparato, Oscar Niemeyer e, entre muitos que já nos deixaram, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Milton Santos e José Gomes da Silva, para lembrar apenas algumas das muitas pessoas jurídicas e personalidades a quem o país mais deve.

Todas essas organizações e pessoas, pelo jeito, são tão míopes e ingênuas, fazem parte ou, pelo menos, estimulam um movimento ideologicamente atrasado e ditatorial, como Zander seja, as suas convicções sobre esse Movimento Social? Se ele não se deixa questionar por nada, não é de admirar que o seu posicionamento, já no passado, tenha provocado tanto mal ao povo sem-terra.

Não se pode esquecer que é baseado nos estudos e nas reiteradas críticas de sua autoria ao MST, que a “instituição” Ministério Público do Rio Grande do Sul vem promovendo uma das maiores e mais violentas perseguições oficiais contra as/os sem-terra que o integram. Em 2007, numa decisão unânime do seu Conselho Superior, decidiu “dissolver” (!) o MST, coisa que, posteriormente, foi revogada, tal o absurdo pretensioso, totalitário e inconstitucional que aí se revelava; este ano, no desdobramento dessas iniquidades, o povo sem-terra chora a morte de um dos seus companheiros, Elton Brum da Silva, ocorrida em São Gabriel, efeito de uma “institucional” execução judicial.

Note-se o tamanho da contradição aí presente. Quem condena o MST por ele não se adequar à institucionalidade, é quem fornece ao Poder institucional, dotado da maior agressividade contra as/os sem-terra, as armas ideológicas capazes de causar as maiores perdas, os maiores danos às pessoas pobres do campo, organizadas em defesa das suas vidas, dignidade e cidadania.

Zander jamais quereria esse efeito, como deu a entender numa entrevista constrangida que já tinha concedido a um jornal de Porto Alegre, antes do assassinato do Elton. Nessa oportunidade, solidarizava-se com o MST (?!), depois que outras violências tinham sofrido as/os suas/seus integrantes, também essas baseadas em execuções judiciais sustentadas, quando menos em parte, nas opiniões dele.

Que essas têm pesado bastante, portanto, para seu pesar, no abuso de autoridade e poder que aquelas violências têm revelado, isso pode ser provado no próprio teor das petições redigidas pelos promotores gaúchos. Não adianta, depois, chorar o leite derramado. O esforço retórico que as sustenta têm nesse autor, senão a principal, uma das mais importantes bases argumentativas.

É muito contraditória, igualmente, a defesa da obrigação de o MST se institucionalizar, quando o autor opina sobre a reforma agrária, considerando-a quase como desnecessária. Acontece que essa política pública, ressalvada a hipótese de se desobedecer flagrantemente tudo quanto ainda resta de fundamentação constitucional nela, tem toda a sua execução dependente do exercício institucional do Poder do Estado. Então, é oportuno perguntar-se, questionando o autor da crítica ao MST e à reforma agrária: tudo quanto ele vê como nociva prática do MST, por não se institucionalizar, se transforma em virtude quando o Poder Público não institucionaliza as políticas que tem a obrigação de institucionalizar em favor do povo pobre do campo?

Zander também considera todos os méritos do MST como fictícios, seja em tamanho de poder, seja em prestígio, seja em número dos seus integrantes. Essa é – mesmo se descontando, mais uma vez, quanto há de “distração” ou “esquecimento” aí presentes, sobre os efeitos suprapositivos que a dignidade humana impõe ao próprio ordenamento jurídico, e ainda que se desconsidere o que pode haver de “rancor” nessa crítica, como o ministro de desenvolvimento agrário chegou a denunciar na análise que fez dela – uma contestação àquelas acusações, seguramente bem mais qualificada do que a nossa, já tinha sido antecipada na mesma “Folha”, um dia antes (edição de 4 de dezembro corrente).

Sob o título de “A contra-revolução jurídica”, Boaventura de Souza Santos não usa os mesmos óculos ideológicos de Zander para ver a realidade injusta e ilegal que oprime o povo sem terra, como ela efetivamente é; não como ela precisa ser disfarçada para se acomodar ao que se estuda e pensa sobre ela.

Justamente naquilo que constitui o eixo central da acusação de Zander contra o MST - institucionalidade - o conhecido pensador denuncia o que esse tão valorizado pressuposto legal está fazendo contra o Movimento: “...anulação de turmas especiais de assentados da reforma agrária (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de programas de educação indígena e de educação no campo.” (...) “Criminalização do MST. Considerado um dos movimentos sociais mais importantes do continente, o MST tem vindo a ser alvo de tentativas judiciais no sentido de criminalizar as suas atividades e mesmo de dissolve-lo com o argumento de ser uma organização terrorista.”

Finalmente, Zander encerra seu texto, diagnosticando como agonizante a situação atual do MST. Não descarta a sua extinção. Então, já é hora, também, de concluirmos nossa modesta defesa do MST e da reforma agrária. Se for “pelos seus frutos que os conhecereis” como diz o evangelho em nova lembrança oportuna para o caso, parece não haver dúvida sobre quem deve ser ouvido, entre os articulistas da Folha, seja no que se refere ao MST, seja no que se refere à reforma agrária.

Se o mau agouro de Zander se cumprir, coisa muitíssimo improvável, por tudo o que acima se referiu, não será na festa que a CNA e seus súditos fiéis presentes nos parlamentos e nas “instituições” vão fazer, a respeito, nem servirá de seu coveiro, o Plinio de Arruda Sampaio. Os frutos do trabalho deste, pelo testemunho de toda a sua vida, são de vida e não de morte, são de enfrentamento da injustiça social mantida e preservada pelo próprio modelo institucional que se quer impingir ao MST, são expressões de um sonho capaz de criar tudo quanto está ausente no texto que lhe serviu de contraponto, um outro mundo possível, como o Fórum Social Mundial tem ensaiado perseverantemente, uma nova sociedade, na qual se partilhe, com a justiça capaz de construir a paz, para alegria e satisfação de todas/os, a terra, a casa, o pão, a verdade e o amor.

Artigos de Zander Navarro (contra) e Plinio de Arruda Sampaio (a favor) da Reforma Agrária

Artigos publicados no Jornal Folha de São Paulo, em 5/12/2009


Treze teses para entender o MST

ZANDER NAVARRO

Enredado em laranjais, desmatamentos ilegais, a ameaça de uma CPI e infindáveis ações, muitas conduzidas sob impressionante primarismo político, talvez seja oportuno um sucinto balanço sobre o MST, um quarto de século após a sua fundação. Como estudo a organização antes mesmo de ser formada, em 1984, ofereço algumas teses para aqueles que têm interesse nos processos sociais rurais e, particularmente, curiosidade sobre o movimento.

Sobre a sua natureza: não obstante o nome, o MST deixou de ser um movimento social há muitos anos, pois logo se estruturou como uma organização, centralizada no essencial (as formas de luta política e as principais bandeiras), mas descentralizada no varejo, ou seja, liberando a criatividade local.

Sociologicamente, movimentos sociais supõem algum grau de espontaneidade na ação e uma liderança flexível, o que o MST não apresenta desde os anos 80. Já as organizações, entre outros aspectos, criam carreiras, e atualmente o Movimento mobiliza centenas de militantes que não sabem desenvolver outra atividade, senão a agitação social.

Os "tempos do MST": a organização nasceu, de fato, na segunda metade dos anos 90, quando passou a frequentar a agenda nacional. Antes era sulista e menos conhecida.

Na mesma época, alterou o seu mecanismo principal de financiamento, até então provido pela generosidade de igrejas europeias, pois descobriu os furos das burras do Estado, com o início do processo de reforma agrária e a constituição do MDA, entre outras fontes estatais, das quais extrai os fundos, via entidades fantasia.

Mas continua recebendo recursos externos. A chance perdida: a "Marcha a Brasília", em abril de 1997, foi o único momento em que uma organização popular encurralou o governo de Fernando Henrique Cardoso, forçado a receber os sem-terra no Planalto. Seria o momento ideal da institucionalização, pois foi o auge da influência e do prestígio do MST. Poderia se transformar em agremiação sindical dos mais pobres do campo.

Seus líderes, contudo, preferiram a semiclandestinidade, contra uma sociedade que afirmava, cada vez mais, a sua natureza democrática. Sem surpresa, desde então os impasses se multiplicaram, pois esta esquizofrenia política não teria como prosperar.

As alianças na sociedade: cresceram no final da década passada, mas vêm estiolando nos anos recentes. Parece que a população foi cansando de tantas estrepolias não democráticas. Nascido no campo petista, onde está firmemente enraizado, mesmo o PT parece enfastiado com uma organização autoritária que perdeu a sua razão de existência e atira a esmo, enfraquecida porque não tem mais uma agenda própria.

Atualmente, apoiam-no setores do catolicismo radical, pequenos grupos em universidades públicas, notadamente cientistas sociais, algumas facções partidárias e, especialmente, estudantes. Demanda social pela reforma agrária: embora voz isolada, sustento que não existe mais demanda significativa, em quase nenhuma região, que justifique um programa nacional de reforma agrária.

Quando muito projetos regionais teriam alguma inteligibilidade, como no Nordeste, por exemplo. É preciso ter a coragem de mudar tudo nesta área, sob pena de manter um surrealismo institucional que desperdiça recursos públicos acintosamente, pois movido unicamente pela inércia e o corporativismo.

Ilusões públicas: o tamanho aparente do MST é muito maior do que a sua expressão real, sendo esta uma de suas armas decisivas para se manter à tona. Usando aliados e espaços da sociedade, amplifica fatos menores e eventos sem expressão, sugerindo ter uma força desmedida. Estrangeiros se confundem com esta paralaxe política, e no exterior se lê com frequência a risível afirmação sobre o "maior movimento social do planeta".

Não apenas parece maior do que é, mas o MST tem, na realidade, reduzido sua capacidade de recrutamento e mobilização. Se observadas criteriosamente, as ocupações de terra e outras ações têm diminuído, em número e tamanho. Fosse viável apurar, se concluiria, além disto, que a maior parte daqueles que nelas participam não são sem-terra, mas assentados e seus familiares, recrutados frequentemente sob formas variadas de intimidação.

O poder da propaganda: no melhor estilo "agit-prop" dos antigos partidos comunistas, o MST se apropriou de parte da sociedade civil, a quem domina e usa os recursos a seu favor.

Como é uma "organização dos pobres", somente uma minoria contesta o autoritarismo do movimento, desgostosos com posturas que algumas vezes beiram o protofascismo. Existindo um fio capilar que perpassa o MST, o campo petista e, mais genericamente, "a esquerda", poucos confrontam aqueles comportamentos, temendo a represália política.

O entrave principal: o MST não se moderniza porque é preso à visão neolítica de seu dirigente maior, que é, de fato, o dono da organização, para usar um termo apropriado, embora deselegante. Egresso do antigo MR-8, nos anos 70, o leninismo de João Pedro Stédile é que tem impedido o MST de se tornar um ator social relevante.

Formou à sua volta uma claque cuja lealdade cultua seu líder e não admite dissidentes. Que o diga José Rainha, o dirigente que afrontou Stédile e acabou exilado no Pontal do Paranapanema, juntamente com o seu MST do B.

"Demonização do MST": são tolas as afirmações sobre iniciativas que supostamente pretenderiam criminalizar a organização. É certo que há setores do empresariado rural que gostariam de liquidar o MST, refletindo sua histórica truculência, mas são irrelevantes em sua expressão social. Denúncias sobre criminalização soam ridículas, em face dos inúmeros atos de óbvia ilicitude. O argumento ignora a democratização e seus imperativos, sendo um absurdo lógico. Ou almejamos uma democracia sob a qual os preceitos legais não valeriam para alguns?

O maior desafio: qual a legitimidade do MST? Ninguém sabe, embora tantas vozes arvorem sua existência. Seus supostos líderes foram escolhidos quando e por quem? E sob qual espaço público, como seria esperado em uma sociedade democrática? Sem legitimação, por que se curvar às suas imposições? Qual é a base social do movimento, alguém saberia dizer? Aqueles que seguem suas ações, militantes ou simpatizantes, fazem-no voluntariamente, porque acreditam no MST, ou porque não têm outra escolha, pois recrutados em assentamentos sob seu domínio, onde controla recursos (públicos) e seleciona politicamente os assentados?

A grande pergunta: é um enigma que as autoridades não exijam a institucionalização do MST. Sobrevivendo primordialmente dos fundos públicos, o Estado tem o direito, senão o dever, de impor tal exigência.

Os requerimentos da transparência e publicização são repetidos monotonamente para todos os outros atores políticos, mas, estranhamente, ao movimento é permitido permanecer alheio à mesma institucionalidade. Se integrado, seriam legítimos seus líderes e as reivindicações, e suas disputas sociais se tornariam parte do ordenamento democrático, obtendo alguma tolerância pública. Se o movimento se recusa a esta mudança, preso a um bizarro fetiche ideológico de origem, somente o governo poderá impô-la, bastando ameaçar o acesso aos fundos públicos.

A vitória principal: na realidade, não tem sido manter viva a reforma agrária, ainda que sob crescente esgarçar. A maior vitória do MST é essencialmente política. Qual seja, mudar a correlação de forças no campo, o que é evidenciado por fato incontornável: não existe hoje nenhuma propriedade rural protegida, caso o MST decida conquistá-la. Com a democratização, a Justiça se tornou mais compreensiva e mesmo a repressão policial foi abrandada, deixando de registrar a inominável violência do passado.

Sob tais condições, a organização conquista o imóvel que ambicionar. A ironia, contudo, é que esta virada vem ocorrendo quando a demanda pelo acesso à terra desaba em todos os rincões rurais, erodida pela urbanização. Uma vitória pírrica, pois quando finalmente viável, a reforma agrária estancou, já que os interessados debandaram.

E o futuro? O MST se defronta hoje com o seu ocaso e tem apenas um caminho à sua frente. Qual seja, a sua institucionalização, organizando-se a favor do desenvolvimento rural e privilegiando os mais pobres das áreas rurais. Mantendo-se como é atualmente, apenas acentua sua lenta agonia, ainda que tantos cientistas sociais ingênuos propaguem manifestações de inacreditável desconhecimento sobre o mundo rural brasileiro. Nascido para defender a reforma agrária, esta viu passar o seu tempo histórico. Avançou o que foi possível, mas encontra em nossos dias os seus limites de necessidade.

Ainda sem sucesso, o MST tem procurado afirmar uma nova agenda ("ódio à ciência, ódio à agricultura moderna, ódio ao empresariado rural"), em nítido desespero demonstrado por tantas iniciativas delirantes, seja por se manter sob um não democrático anacronismo organizacional, seja por defender uma ideologia antimoderna. Se persistir neste rumo, apenas apressará o seu desaparecimento.

ZANDER NAVARRO, 58, mestre e doutor em sociologia, é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador visitante do Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento da Universidade de Sussex (Inglaterra). Atualmente integra a Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
 
 
As duas novas reformas agrárias

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO

Reforma-se algo que não está funcionando a contento. Altera-se então a forma de alguma coisa, sem alterar sua substância. Por isso mesmo, uma mesma coisa pode ser reformada várias vezes. Com a estrutura agrária acontece exatamente o mesmo.

Todas as vezes em que ela emperra a realização do projeto de algum grupo social importante, esse grupo propõe uma reforma agrária.

Na época moderna, o motivo principal das reformas agrárias foi a rigidez da estrutura agrária herdada da Idade Média porque impedia o pleno funcionamento do mercado capitalista e das instituições capitalistas no campo. De modo geral, essas reformas agrárias foram distributivistas -promoviam a desapropriação de grandes latifúndios e seu parcelamento em lotes familiares.

Nos anos 50 do século passado foi esse tipo de reforma agrária que entrou na agenda política do país, proposta apresentada pelas demais forças progressistas, racionalizada pela Cepal, sob o argumento do atraso do setor agrícola e dos seus efeitos no processo inflacionário, e incorporada pelos governos que "compraram" a ideia do presidente Kennedy, o qual viu a possibilidade de evitar a propagação da Revolução Cubana num processo moderado de distribuição das terras dos latifúndios latino-americanos.

A proposta de reforma agrária deu ensejo a um intenso debate teórico em torno do problema da terra. O golpe de 1964 encerrou o debate, o qual só foi reaberto 20 anos depois, agora sustentado por novas organizações populares e novos partidos de esquerda. Muitos intelectuais -inclusive os que hoje a renegam- encarregaram-se de justificá-la teoricamente.

Não se tratava mais da reforma de 1964, porque os militares, nos seus 20 anos de governo, haviam realizado a modernização do campo sem distribuição massiva de terra, porém a um preço social e ecológico altíssimo. Tratava-se de corrigir essas distorções. Portanto, tratava-se agora de reforma agrária social, destinada a humanizar o capitalismo agrícola e a preservar o meio ambiente.

Hoje o governo Lula praticamente enterrou esse tipo de reforma agrária. Por isso os movimentos populares foram levados a radicalizar sua pressão sobre a terra. Além das ocupações, promoveram marchas, fechamento de estradas, danificação de pedágios e, ultimamente, danificação de instalações e plantações de propriedade de grandes agronegócios. Em uma sociedade anestesiada, incapaz de sensibilizar-se por argumentos racionais, que se move unicamente pressionada por gestos ostensivos, tais atitudes se justificam pelo estado de necessidade, pois não há outra forma de chamar a atenção para o descaso criminoso do governo com a população rural.

Qual a leitura a ser feita então a respeito de fatos como a derrubada de laranjais da fazenda Cutrale; a danificação das mudas de transgênicos na Syngenta; a ocupação dos latifúndios do banqueiro Dantas no Pará?

Esses e outros gestos publicitários visam bloquear um processo de reforma agrária atualmente em plena marcha e, ao mesmo tempo, propor um projeto alternativo de reforma. O processo de reforma a ser bloqueado está sendo executado aceleradamente.

Origina-se na contrarrevolução neoliberal dos anos 90 e na nova divisão internacional do trabalho que dela decorreu.

Essa nova divisão alterou o lugar da economia brasileira no mercado capitalista internacional e isto está a exigir a transformação rápida da sua atual estrutura agrária, a fim de que os grandes agronegócios internacionais montem uma formidável economia exportadora de quatro produtos altamente demandados pelas economias que lideram a nova fase do capitalismo -soja, álcool de cana de açúcar, carne e madeiras.

O grande capital internacional assumiu por conta própria a realização dessa reforma e a está implementando, mediante a compra de terras e de empresas agrícolas, de que é exemplo a compra da Usina Santa Elisa pelo grupo Dreiffyus.

Por ação e por omissão, o governo Lula apoia entusiasticamente essa nova reforma agrária. Por omissão, quando paralisa o raquítico programa de assentamentos da "reforma agrária social"; por ação: quando edita leis que permitem legalizar 67 milhões de hectares de terras griladas na Amazônia, a fim de que os grileiros (convertidos em proprietários legais) as vendam aos grandes agronegócios para produção de soja e para criação de gado nessas terras; quando realiza pesados investimentos na transposição das águas do rio São Francisco, a fim de criar uma economia exportadora de frutas tropicais, comandada pelos grandes agronegócios e destinada a países do hemisfério norte; quando prorroga a entrada em vigor de leis que protegem as florestas.

Requisito indispensável para o êxito dessa reforma agrária dos ricos é calar os movimentos sociais do campo, especialmente aquele que, aqui e no exterior, simboliza a luta da população pobre pela terra: o MST. O capital transnacional não vai aonde pode correr riscos.

O serviço que os intelectuais hoje dedicados a desmoralizar o MST prestam a essa nova reforma agrária consiste em fornecer argumentos pseudamente racionais para justificar a criminalização desse movimento.

A outra reforma agrária -a dos movimentos autênticos do campo e das forças sociais progressistas- visa contrarrestar a reforma concentradora dos agronegócios e atender às necessidades de 6 milhões de famílias pobres do campo. Trata-se de consolidar a agricultura familiar -que responde tanto pela maior porcentagem da produção de alimentos quanto da oferta de empregos no campo e de desapropriar todos os imóveis de tamanho superior a 1.000 hectares, a fim de redistribuir essas terras à população rural sem terra.

O MST e a CPT (órgão da CNBB) levantaram essa bandeira, cabendo às forças progressistas que ainda restam na nação empunhá-la e levá-la adiante.

A estrutura agrária que se formará nesse processo criará a base material requerida para viabilizar um rigoroso processo de zoneamento agroecológico da produção e um programa de descentralização do abastecimento alimentar da população. A prioridade que deverá ser dada a esses objetivos não é incompatível com o aproveitamento da demanda externa pelas "commodities" agrícolas porque o país possui uma enorme quantidade de terras.

Os desertores da reforma agrária, que hoje se ocupam de intrigar a opinião pública contra o MST, não conseguem separar o fato social do movimento político: o MST é um movimento político socialista que, diante do fato social representado pelo conflito fundiário, organiza a luta de uma das partes do conflito -a população rural sem terra- do mesmíssimo modo que a CNA; a bancada ruralista; os partidos da direita; a grande mídia (com matérias escandalosamente facciosas); e os intelectuais a serviço desses interesses organizam a luta da outra parte no conflito: o agronegócio.

Para que o debate sobre as duas reformas agrárias seja racional, é preciso pôr de lado a impostura da imparcialidade.

Este analista toma partido -está do lado dos sem-terra- e é deste ponto de vista que interpreta racionalmente a realidade do campo. Quem diz não estar de lado nenhum, mas do lado do Brasil, não está dizendo a verdade: o Brasil não tem lado no conflito agrário, porque é impossível realizar uma reforma que atenda ao mesmo tempo quem quer a concentração e quem quer a desconcentração da propriedade rural.

Contudo há uma crítica a ser feita à ocupação da fazenda da Cutrale. Segundo a empresa, os ocupantes destruíram 7.000 pés de laranja. Erraram: deviam ter destruído 70 mil (o que nem seria muito notado numa fazenda de 1 milhão de pés) a fim de chamar mais a atenção para o fato de que essa fazenda ocupa ilegalmente terras públicas com a conivência do Poder Judiciário.

Muito mais do que 70 mil são as vidas de crianças estão sendo destruídas pelo desemprego agrícola; pelos salários escandalosamente baixos dos trabalhadores rurais; pela precariedade das habitações rurais -fonte de doenças que destroem vidas.

O MST está certíssimo na sua tática de luta. Só lhe falta proclamar com maior vigor e clareza a cumplicidade de Lula na reforma agrária do agronegócio e cobrar mais apoio dos partidos de esquerda, das igrejas, da universidade, dos ecologistas (que precisam sair de cima do muro e assumir a luta camponesa), bem como exigir do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos juízes e promotores permitem o protelamento indefinido ações de desapropriação e não fiscalizam as violências policiais cometidas contra os lavradores nas reintegrações de posse, o cumprimento de suas obrigações.

O MST deve cobrar: a população rural é credora e não devedora.

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 79, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e ex-consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Foi deputado federal constituinte pelo PT-SP e candidato a governador de São Paulo pelo mesmo partido em 1990. Em 2005, filiou-se ao PSOL, partido pelo qual concorreu ao governo de São Paulo em 2006.




15 de nov. de 2009

O Brasil está entre os 10 países que mais desperdiçam comida no mundo

O investimento em tecnologia de ponta nas últimas décadas colocou o Brasil entre os países mais competitivos do agronegócio no mercado internacional, mas não foi suficiente para acabar com um problema básico: o desperdício de alimentos ao longo da cadeia produtiva A reportagem é de Débora Carvalho e publicada pela revista Desafios, set/out 2009.
Fonte: UNISINOS



Com a crise econômica internacional, a estimativa da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) é que, até o final de 2009, a América Latina deve contabilizar 53 milhões de famintos. Ao mesmo tempo, os países da região desperdiçam grandes volumes de alimentos, que seriam suficientes para alimentar toda a população carente. Para a FAO, a redução das perdas é uma solução para o aumento da oferta de comida. As causas primordiais desse prejuízo são maus hábitos de alimentação e o gerenciamento inadequado, desde o plantio até a chegada do produto à mesa do consumidor.

O Brasil está entre os 10 países que mais desperdiçam comida no mundo. Cerca de 35% de toda a produção agrícola vão para o lixo. Isso significa que mais de 10 milhões de toneladas de alimentos poderiam estar na mesa dos 54 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza. Segundo dados do Serviço Social do Comércio (Sesc), R$ 12 bilhões em alimentos são jogados fora diariamente, uma quantidade suficiente para garantir café da manhã, almoço e jantar para 39 milhões de pessoas.

O descuido percebido no processo produtivo se repete na casa das pessoas. De acordo com o Instituto Akatu, organização não-governamental dedicada a promover o consumo consciente, uma família brasileira desperdiça, em média, 20% dos alimentos que compra no período de uma semana. Em valores, isso representa US$ 1 bilhão, dinheiro suficiente para alimentar 500 mil famílias. Além das pessoas que poderiam ser alimentadas com o que vai para o lixo, desperdiçar significa prejuízo financeiro. Levantamento da Secretaria de Abastecimento e Agricultura do Estado de São Paulo mostra que todos os alimentos não aproveitados ao longo da cadeia produtiva representam 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, um rombo de R$ 17,25 bilhões de reais no faturamento do setor agropecuário.

Em 2005, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) analisou os índices de perdas do plantio à pré-colheita dos principais grãos cultivados no país, entre 1996 e 2002, tais como arroz, feijão, milho, soja e trigo. Essa pesquisa aponta que a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) estimava perdas de grãos em cerca de 10% da produção, o que correspondia a 9,8 milhões de toneladas, considerando números da safra 2000/2001.

O governo promete para 2010 um novo estudo do panorama do desperdício na lavoura, o que vai ajudar na formulação de alternativas para resolver o problema. "Já havia um contrato com uma universidade federal para começar o estudo no ano passado, mas o projeto foi postergado por problemas contratuais', explica o superintendente de Armazenagem e Movimentação de Estoques da Conab, Milton Libardon

Segundo ele, o governo dispõe de um orçamento de R$ 500 mil para começar o trabalho e está negociando parcerias com 15 universidades em todo o Brasil para uma pesquisa de perdas, que deve ser iniciada em 2010.

O superintendente da Conab ressalta a necessidade de conhecer o problema para combatê-lo. 'As perdas existem, mas estamos usando índices estrangeiros. E o desperdício maior acontece na hora da colheita. Caminhando na roça, é visível a produção perdida', comenta.

Uma alternativa apontada pelo superintendente da Conab - muito comum nos países desenvolvidos - é o financiamento de armazéns nas próprias fazendas. Isso reduziria a manipulação do produto, que passaria a ser transportado apenas uma vez para a indústria de beneficiamento ou para o varejo. "O problema é que isso é muito caro", afirma Libardoni. Hoje, é preciso levar a produção do campo para a armazenagem e daí para o processamento.

A falta de qualificação e tecnificação no campo foi uma realidade apontada pela pesquisa do IBGE, que avaliou as perdas agrícolas. Segundo o estudo, o prejuízo começa muito antes da perda física, relacionada ao produto que fica pelo caminho antes da comercialização. No plantio, por exemplo, foi verificado que o uso de sementes de baixa qualidade ou a escolha de variedades não recomendadas para as condições de clima da região e a falta de preparo correto do solo podem representar perdas nas lavouras antes e depois do momento de colher os produtos.

Os pesquisadores apontaram, inclusive, que é na fase de colheita que ocorrem as maiores perdas e os motivos são diversos. Um exemplo é a falta de regulação, operação e manutenção adequadas das colheitadeiras ou equívocos na identificação do grau de maturação do produto. A partir dessa pesquisa, é possível observar que questões colocadas como desafios à mitigação desse desperdício ainda hoje são citadas como entraves a serem resolvidos. "Um problema também seria treinar o pessoal dos armazéns e os operadores de colheitadeiras para reduzir prejuízos", sugere Libardoni.

As dificuldades se repetem na pós-colheita. Falta infraestrutura na rede de armazenagem e no transporte da produção brasileira. Nessa fase, os estragos podem ocorrer tanto do ponto de vista físico, como da qualidade do produto. Os pesquisadores do IBGE identificaram que os danos mais expressivos se dão nas commodities, com perdas ao longo do transporte até a chegada aos portos. Segundo o Ministério da Agricultura, em 2008, o Brasil arrecadou US$ 71,9 bilhões com as exportações de produtos agropecuários.

Para o consultor em Logística e Infraestrutura da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), Luiz Antônio Fayet, os debates sobre o desperdício revelam a ponta de um iceberg, formado pelos fatores que minam a competitividade do agronegócio brasileiro. Ele explica que as pessoas se impressionam ao ver os grãos à beira das estradas, caídos dos caminhões, mas isso seria insignificante se comparado às perdas financeiras no carregamento de estoques. "Não existe perda zero, o prejuízo físico tem uma variação de cerca de 5%. Mas o custo e os problemas, gerados pela falta de infraestrutura, acarretam prejuízos muito maiores', afirma Fayet.

Segundo o IBGE, a estimativa é de que 67% das cargas brasileiras sejam deslocadas pelo modal rodoviário, o menos vantajoso para longas distâncias. Conforme estudo de viabilidade econômica dos transportes de cargas, o modal rodoviário é o mais adequado para as distâncias inferiores a 300 km, enquanto o ferroviário o é para distâncias entre 300 km e 500 km; e o fluvial para distâncias acima de 500 km.

Esse entrave se agravou ainda mais com a mudança na geografia de produção que passou das regiões Sul e Sudeste para o Centro-Norte do país. Um exemplo é o valor pago pelo frete em relação ao que o agricultor recebe pelo produto. Segundo Fayet, em 2007, um produtor de soja do município de Sorriso, Mato Grosso, recebia R$ 23 pela saca e gastava R$ 12 para levá-la até o porto, onde embarcaria a carga para o mercado internacional. Ou seja, o gasto com o escoamento representava mais de 50% do valor recebido pelo produtor. "Além do grão que é desperdiçado, o Brasil fica impedido de crescer e de se tornar ainda mais competitivo', comenta.

No Paraná, governo, iniciativa privada, universidades e entidades ligadas ao agronegócio se juntaram para trabalhar contra o desperdício. Há seis anos são organizados concursos regionais e estaduais para premiar os agricultores que apresentam os menores índices de perdas nas lavouras até a colheita. O extensionista do Instituto Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-PR), Luiz Vicentini, explica que o objetivo é estimular produtores e operadores a realizarem com mais cuidado a tarefa da colheita. A meta é chegar o mais próximo possível dos níveis de perdas aceitáveis para cada região, no caso da soja, em média uma saca por hectare.

A apuração dos resultados é feita por técnicos da Emater e acadêmicos da Universidade Estadual de Maringá, que percorrem as lavouras antes e depois da colheita, contabilizando e medindo o que foi desperdiçado. Na última edição do prêmio, o ganhador perdeu menos de 5 quilos por hectare. "Mais de 30 prêmios, como carros, motocicletas e máquinas agrícolas, são um estímulo para as pessoas cuidarem melhor, ajustarem as máquinas, reduzindo os prejuízos', diz Vicentini.

Ele explica que a iniciativa começou em 1995, quando os organizadores da Festa da Colheita da Soja - tradicional no estado - perceberam que, além da comemoração, poderiam mobilizar os produtores. "É importante pensar nisso, porque desperdiçar significa o lucro líquido do agricultor que vai embora. E a competição tem promovido uma mudança de cultura também nos mais de 200 colhedores que trabalham nas fazendas', ressalta o técnico. Ele lembra ainda que o concurso paranaense é um exemplo que já atraiu técnicos de outros estados produtores, principalmente do Centro-Oeste, para conhecer e levar a ideia a outros lugares.

Mas o caminho do desperdício não se limita ao percurso da colheita até o transporte. Quando se fala em frutas e hortaliças, produtos mais perecíveis, as perdas são ainda maiores e ultrapassam os limites do campo, chegando ao varejo e às cozinhas brasileiras. Um estudo da FAO, de 2004, revela que o Brasil está entre os 10 países que mais jogam comida no lixo, com perda média de 35% da produção agrícola. A Embrapa Agroindústria de Alimentos realizou uma pesquisa focada nesse tipo de produtos e mostrou que o brasileiro joga fora mais alimentos do que, efetivamente, leva à mesa. Nas 10 principais capitais do país, o consumo anual de vegetais é de 35 quilos por habitante. No entanto, o desperdício chega a 37 quilos por habitante/ano.

Do total de desperdício no país, 10% ocorrem durante a colheita; 50% no manuseio e transporte dos alimentos; 30% nas centrais de abastecimento; e os últimos 10% ficam diluídos entre supermercados e consumidores. Segundo o pesquisador da Embrapa, Antônio Gomes, o fim desse problema tem vantagens em diferentes aspectos.

"Se o Brasil reduzisse as perdas, poderia oferecer mais produtos para o mercado interno, barateando os preços, e também exportar mais, sem a necessidade de investimentos adicionais na abertura de novas fronteiras agrícolas", argumenta Gomes. Ele afirma que o índice de perdas é maior do que se consegue calcular, basta observar a quantidade de lixo orgânico gerado nas centrais de abastecimento das grandes capitais.

De acordo com um levantamento do governo de São Paulo, o volume de perdas da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), o maior mercado da América Latina, chega a 1% de tudo o que é vendido em um dia, ou seja, mais de 100 toneladas diárias no lixo.

O pesquisador da Embrapa explica que o problema começa no campo, mas culmina no varejo. Colheita incorreta, transporte inadequado, embalo dos produtos em caixas de madeira são exemplos de práticas que resultam em uma realidade preocupante: muitos produtos que saem do campo para a cidade nem chegam a ser comercializados, porque se perdem no caminho. Isso significa que o custo para produzir aquele alimento foi totalmente perdido. "Muitas frutas, como laranja, abacaxi, são transportadas a granel em caminhões, que vão sacudindo na estrada e causando injúrias nos vegetais que nem chegam às prateleiras'.

Antônio Gomes lembra que não existe uma cadeia de frio para distribuir esse tipo de produto. Ele argumenta que, em um país de dimensões continentais como o Brasil e com clima tropical intenso durante a maior parte do ano, seria mais adequado que frutas, legumes e verduras saíssem das lavouras direto para o resfriamento. A temperatura precisaria ser mantida em baixos níveis durante o transporte e o período de exposição no varejo, o que não acontece no Brasil.

Outro problema apontado pelo pesquisador é a falta de informação dos consumidores. Não se trata apenas de saber aproveitar melhor os produtos na hora de cozinhar, mas sim da necessidade de cuidados também no momento da compra. "É preciso educar o consumidor. Se na hora de escolher o quiabo, você quebra a ponta, ninguém mais vai querer esse produto. Se, ao escolher o tomate, o cliente amassa o vegetal, é mais uma perda", exemplifica Gomes.

Em meio a tantas formas de desperdício, a alta conta gerada pelas perdas não fica diluída ao longo da cadeia. Segundo a Embrapa, agricultor e consumidor são os mais prejudicados. Isso acontece porque o investimento para produzir, manipular e transportar o alimento já foi feito. Antes do produto se perder, a rede varejista faz uma previsão de perdas e repassa tanto ao preço pago ao produtor, quanto ao que é cobrado do cliente. "O agricultor recebe menos e o consumidor paga mais. É preciso rever esse processo, porque o varejo dilui o prejuízo. Investir em produtividade tem significado também aumentar o volume do desperdício. Quanto mais produzimos, mais jogamos fora. É preciso pensar com mais seriedade em uma solução para as perdas", lamenta o pesquisador.

O Ministério da Agricultura possui uma regulamentação que classifica os vegetais e estabelece regras para manter a qualidade, mas, na prática, as normas não são cumpridas. "Governo e agentes do mercado precisam ser parceiros e fazer valer a lei". Para o pesquisador, a mudança desse quadro passa pela qualificação de todos os envolvidos na cadeia produtiva, desde o trabalhador rural que colhe o alimento até os estoquistas e funcionários dos pontos de varejo.

A redução do desperdício, no entanto, é uma preocupação séria da rede varejista. A Associação Brasileira de Supermercados (Abras), em parceria com outras entidades, faz todos os anos uma avaliação de perdas. A pesquisa mostrou que, em 2007, mais de 82% dos pontos de varejo pesquisados possuíam departamentos específicos para cuidar desse assunto e 75% deles reconheciam ter investido em soluções. O levantamento, feito todos os anos, busca identificar causas e avaliar o custo-benefício para a implantação de programas de prevenção de perdas.

Em 2007, o índice médio de desperdício foi de 2,15% do total comercializado, desse volume 55% são produtos perecíveis. Apesar de permanecer crescendo desde 2004, o ritmo de perdas no caso específico dos perecíveis avançou apenas 0,2 ponto percentual ao final de três anos. O estudo da Abras chama atenção para o fato de as perdas de perecíveis terem reduzido em 2007, mas revela um aumento desse prejuízo com causas desconhecidas. Isso dificulta a formulação de iniciativas para combater o problema.

14 de nov. de 2009

Professores da UFPA saem em defesa do MST

A produção de um "novo" massacre?
Fonte: Correio da Cidadania 


É clara a campanha nacional de criminalização dos movimentos sociais no Brasil e também é nítida a participação nesse processo de setores de nossa sociedade comprometidos com a defesa da propriedade privada em detrimento de sua função social. Englobando essa campanha ainda temos nossas mídias impressas e televisivas veiculando matérias e reportagens que criam fatos e divulgam versões de acontecimentos desmoralizando movimentos e suas bandeiras de luta.

Nesse cenário, a desmoralização do MST parece ser a primeira tarefa desta campanha nacional de criminalização dos movimentos sociais e o sentido que ganha essa desmoralização é claro: é preciso criar fatos e notícias que construam uma imagem negativa do movimento para que qualquer ação contra o mesmo tenha uma legitimidade social; coloniza-se o imaginário para legitimar ações brutais.

Mas precisamos analisar os fios que tecem essas estratégias e as conseqüências drásticas que as mesmas estão trazendo e podem ainda trazer.

No caso do MST uma rede muito bem estruturada e articulada vem produzindo, quase que diariamente, um conjunto de fatos que viram notícias de ampla circulação e divulgação nacional, sendo que estas notícias ganham autonomia de construir realidades e, assim, difundir uma verdade sobre o movimento que ganha aceitação e, muitas vezes, aclamação popular.

A estratégia de produção do estereótipo começa com a construção de um fato que ganha tons de negatividade e desorganização da pretensa "ordem" social. Os fatos são literalmente criados obscuramente e nos momentos de mobilização e agendas do movimento, algo deve acontecer...

Após o fato efetivado é preciso criar notícias e fazer circular uma imagem de destruição. Nestes termos, fatos isolados ganham uma visibilidade estrondosa, no sentido de ações obscuras forjadas para se criar fatos jornalísticos, e se transformam na prática usual.

Diante das notícias uma necessidade se edifica: construir os mocinhos e os bandidos da situação. Logicamente que esta é hora de se vestir o discurso jornalístico com os tons do discurso legalista e automaticamente condenar o movimento criminalizando-o.

Até aí a mídia assume as rédeas da desmoralização, após isso outros sujeitos políticos entram no processo.

A justiça, nesse sentido, após o fato se consolidar como algo que deve ser resolvido de forma urgente, precisa encontrar os culpados e, assim, personifica-se o movimento e se indicia suas lideranças, no sentido de desmobilizá-lo.

Diante de todas estas estratégias, que são engolidas dia-a-dia pela população através das notícias, cria-se uma legitimidade social para as prisões. Será que um novo massacre está se construindo?

Estamos vendo e vivenciando no sudeste do Pará mais uma tentativa desmedida de criminalização do MST que articula múltiplas esferas de poder com a condescendência passiva de nossa mídia vendida e vendível.

O MST iniciou dia 3 de novembro a Jornada de Lutas pela Reforma Agrária exigindo a desapropriação imediata de todas as fazendas ocupadas por eles para atender 2000 famílias acampadas no estado do Pará.

É durante as atividades desta jornada de lutas que mais um fato se cria e mais uma vez o MST é criminalizado, como que se lutar pela função social da propriedade fosse crime no Brasil.

Na última sexta-feira não tivemos um novo massacre novamente na curva do "S" em Eldorado dos Carajás, pois lá estavam pessoas que impediram a ação violenta da polícia.

O pior de tudo isso é que a sociedade, pela campanha da mídia de demonização do movimento, não compreende o valor de sua luta e acaba legitimando as ações violentas contra o mesmo. Temos de ter o cuidado de não sermos cúmplices de um novo massacre que se anuncia.

O Núcleo de Educação do Campo da Universidade Federal do Pará, Campus de Marabá, tem desenvolvido parcerias estratégicas de formação com o MST, a FETAGRI, a Via Campesina e outros movimentos, no sentido de construir a autonomia dos sujeitos participantes através da formação de um senso crítico acerca das contradições envolvidas no processo de desenvolvimento pensado para a Amazônia.

Por isso, o Núcleo de Educação do Campo da Universidade Federal do Pará – Campus de Marabá apóia o MST e reforça a necessidade de abertura de negociação com o INCRA, o MDA e o ITERPA, colocando-se completamente contra as prisões recentemente decretadas, pois acredita que a defesa da FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE é algo que a Constituição prevê e deve garantir.

Justiça social no campo só com REFORMA AGRÁRIA.


Marabá, 11 de novembro de 2009.


Assinam:

Bruno Cezar Maleiro – professor UFPa
Alexandre – professor UFPa
Haroldo Souza – professor UFPa
Francinei Bentes Tavares – professor UFPa
Eliana Pereira M. Soares – professora UFPa
Ronaldo da Silva Souza – professor UFPa
Edma Moreira – professora Ufpa
Cloves Barbosa – professor UFPa
Hildete dos Anjos – professora Ufpa
Joseline Simone Trindade – professora UFPa
José Pedro Martins – professor UFPa
Evandro Medeiros – professor UFPa
William Assis Santos – professor UFPa
Fernando Michellotti – professor UFPa
Idelma Santiago – professora IFPa
Airton Pereira – professor UEPa
Maria Carolina de Souza santos – estudante UFPa
Suzane Chagas Rodrigues – estudante UFPa
Roman de Souza Cabral – estudante UFPa
Simone Brandão Miranda – estudante UFPa
Maria Lúcia da Silva Coelho – estudante UFPa
Leandro de Souza e Silva – estudante UFPa
Cristiano Brito da Silva – estudante UFPa
Adriany Costa Ferreira – estudante UFPa
Aline Carla A. Carvalho – estudante UFPa
Carla Betânia Reiher – estudante UFPa
Iramita Alves Pimentel – estudante UFPa
Sidineia dos Santos Reis – estudante UFPa
Iara Fernandes Reis – estudante UFPa
Ynoã Soares de Camargo – estudante UFPa
Junior Gleyssom da Cruz – estudante UFPa
Elias F. de Souza – estudante UFPa
Zildeane Rodrigues de Medeiros – estudante UFPa
Thiago Martins da Cruz – estudante UFPa
Agelson Vaz Nascimento – estudante UFPa
Genivaldo Sousa Rocha – estudante UFPa
Adriano Vieira – estudante UFPa
Jane Martins dos Santos – estudante UFPa
Ângela Maria Gregório – estudante UFPa
Risone B. Costa – estudante UFPa
Osmarina Oliveira – estudante UFPa
Suzy Gomes dos Santos – estudante UFPa
Antonielda da Silva assunção – estudante UFPa
Rafael Rodrigues Lopes – estudante UFPa
Marcelo Melo dos Santos – estudante UFPa
Etiane Patrícia dos Reis – estudante UFPa
Raimundo Gomes da Cruz Neto – Sociólogo
Eric de Belém – Antropólogo
Rosemayre Bezerra - Socióloga

11 de nov. de 2009

NÃO AO DESEMPREGO, por Saramago

Diante das manifestações que se estão preparando em toda a Europa, de protesto contra o desemprego, escrevi, a pedido de um grupo de sindicalistas, o texto que a seguir se reproduz.


Não ao Desemprego


A gravíssima crise económica e financeira que está convulsionando o mundo traz-nos a angustiante sensação de que chegámos ao final de uma época sem que se consiga vislumbrar o que e como será o que virá de seguida.

Que fazemos nós, que assistimos, impotentes, ao avanço esmagador dos grandes potentados económicos e financeiros, loucos por conquistar mais e mais dinheiro, mais e mais poder, com todos os meios legais ou ilegais ao seu alcance, limpos ou sujos, regulares ou criminais?

Podemos deixar a saída da crise nas mãos dos peritos? Não são eles precisamente, os banqueiros, os políticos de máximo nível mundial, os directores das grandes multinacionais, os especuladores, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, os que, com a soberba de quem se considera possuidor da última sabedoria, nos mandavam calar quando, nos últimos trinta anos, timidamente protestávamos, dizendo que não sabíamos nada, e por isso nos ridicularizavam? Era o tempo do império absoluto do Mercado, essa entidade presunçosamente auto-reformável e auto-regulável encarregada pelo imutável destino de preparar e defender para sempre e jamais a nossa felicidade pessoal e colectiva, ainda que a realidade se encarregasse de desmenti-lo a cada hora que passava.

E agora, quando cada dia aumenta o número de desempregados? Vão acabar por fim os paraísos fiscais e as contas numeradas? Será implacavelmente investigada a origem de gigantescos depósitos bancários, de engenharias financeiras claramente delitivas, de inversões opacas que, em muitos casos, mais não são que massivas lavagens de dinheiro negro, do narcotráfico e outras actividades canalhas? E os expedientes de crise, habilmente preparados para benefício dos conselhos de administração e contra os trabalhadores?

Quem resolve o problema dos desempregados, milhões de vítimas da chamada crise, que pela avareza, a maldade ou a estupidez dos poderosos vão continuar desempregados, mal-vivendo temporariamente de míseros subsídios do Estado, enquanto os grandes executivos e administradores de empresas deliberadamente conduzidas à falência gozam de quantias milionárias cobertas por contratos blindados?

O que se está a passar é, em todos os aspectos, um crime contra a humanidade e desde esta perspectiva deve ser analisado nos foruns públicos e nas consciências. Não é exagero. Crimes contra a humanidade não são apenas os genocídios, os etnocídios, os campos de morte, as torturas, os assassinatos selectivos, as fomes deliberadamente provocadas, as contaminações massivas, as humilhações como método repressivo da identidade das vítimas. Crime contra a humanidade é também o que os poderes financeiros e económicos, com a cumplicidade efectiva ou tácita de os governos, friamente perpetraram contra milhões de pessoas em todo o mundo, ameaçadas de perder o que lhes resta, a sua casa e as suas poupanças, depois de terem perdido a única e tantas vezes escassa fonte de rendimiento, quer dizer, o seu trabalho.

Dizer “Não ao Desemprego” é um dever ético, um imperativo moral. Como o é denunciar que esta situação não a geraram os trabalhadores, que não são os empregados os que devem pagar a estultícia e os erros do sistema.

Dizer “Não ao Desemprego” é travar o genocídio lento mas implacável a que o sistema condena milhões de pessoas. Sabemos que podemos sair desta crise, sabemos que não pedimos a lua. E sabemos que temos voz para usá-la. Frente à soberba do sistema, invoquemos o nosso direito à crítica e ao nosso protesto. Eles não sabem tudo. Equivocaram-se. Enganaram-nos. Não toleremos ser suas vítimas.

José Saramago, 10/11/2009
Fonte: O Caderno de Saramago

10 de nov. de 2009

Os muros que isolam os ricos dos pobres



Os EUA, que têm uma fronteira de 3.200 km com o México, constróem, desde 2006, um duplo muro de 1.125 km de comprimento entre a Califórnia e o Texas para impedir a imigração clandestina proveniente do sul.




Na província de Buenos Aires, na Argentina, um muro foi erigido para separar o bairro rico de San Isidro daquele mais pobre de San Fernando.




Um muro cerca a favela de Santa Marta na zona sul do Rio de Janeiro.




Uma cerca separa o Zimbabwe da África do Sul. É uma tentativa de impedir que cidadãos do Zimbabwe, esfomeados, migrem ilegalmente para o país vizinho do sul.




Marroquinos esperam diante do muro que separa o Marco do enclave espanhol de Ceuta em 2008.




Operários instalam uma nova cerca para separar o enclave espanhol de Melila do Marrocos e limitar, desta maneira, a migração para a Europa.



Em 2006, a municipalidade de Pádua, no nordeste da Itália, erigiu um barreira de aço de 84 metros de comprimento e 3 metros de altura para isolar um "ghetto" - um conjunto de seis imóveis ocupados por imigrantes - do resto da cidade. Um bairro complexo onde a polícia tem grande dificuldades para combater o tráfico de drogas.


Fotos: Le Monde, 29-10-2009.
Fonte: UNISINOS



Palestino derruba parte do muro que separa a Cisjordânia de Israel durante protesto, ontem, que lembrou as comemorações dos 20 anos da queda do Muro de Berlim.




Fonte: Bernat Armangue/Associated Pres - Folha de S. Paulo, 07-11-2009.
Fonte: UNISINOS

4 de nov. de 2009

Cutrale e a moral do “sepulcro caiado”

Por Roberto Malvezzi (Gogó), ex-coordenador da CPT, é agente pastoral.
Fonte: Correio da Cidadania



Faço esse texto a pedido de muitos amigos. Para muitos, o meu texto "Cutrale devolve terras griladas" fez com que muita gente acreditasse na conversão da empresa. Então, dou as devidas explicações.

A ocupação da Cutrale pelo MST trouxe algumas perplexidades. Eu mesmo me senti constrangido quando o movimento foi acusado de depredar e, sobretudo, de furtar objetos pessoais de funcionários da empresa. Depois, o próprio Movimento lançou uma nota pedindo desculpas de seus erros, negou a depredação e, sobretudo, o furto de alguns objetos. Achei a carta do MST bonita e convincente. Só os magnânimos têm capacidade de reconhecer seus próprios erros. O Movimento teve.

Entretanto, vendo a televisão e jornais, fiquei indignado com a moral farisaica que jorrou sobre o caso. Deputados, setores da mídia, profissionais da mídia, até o presidente da República, desfilaram uma onda de ataques ao movimento, mas sempre ocultando o problema mais grave, isto é, o fato de a empresa ocupar área pública grilada. Foi pretexto até para uma nova CPI sobre os Sem Terra.

E não é só a Cutrale. O professor Ariovaldo Umbelino estima que cerca de 200 milhões de hectares de terras públicas, 25% do território brasileiro, estão ocupados ilegalmente. Agora esse número deve diminuir, já que o governo Lula decidiu legalizar o grilo de 67 milhões de hectares só na Amazônia. Mas não é só ali. O Pontal do Paranapanema e outras regiões do Brasil apresentam o mesmo problema.

Então, todas essas acusações contra o MST me pareceram coisa típica da moral farisaica, que "côa mosquito e engole camelo", ou dos sepulcros caiados, que "estão bonitos por fora e cheios de toda podridão por dentro". Lamentar 7 mil pés de laranja e não ver as 100 mil famílias que estão nas estradas, ignorar o grilo das terras, ignorar o que está acontecendo com os Guaranis no Mato Grosso, com os atingidos pelos grandes projetos, é uma moral de hipócritas, que coam mosquito e engolem elefantes.

Decidi fazer um texto ironizando o caso. A grande mídia rodeou o texto, telefonou, mandou e-mails, mas não mordeu a isca. Não iria repercutir um texto como esse. Muitos amigos riram na hora, até elogiaram a peça de marketing ou disseram que era mais fácil acreditar em "saci, ET de Varginha, Papai Noel etc.". Porém, talvez por ingenuidade, ou por querer ver algo de sério acontecer nesse país, muitos acreditaram, embora seja a essência do absurdo. Quem já viu grileiro devolver terras, respeitar sem terra, reconhecer os problemas históricos dos índios etc.?

Então, afirmo que o texto "Cutrale devolve terras griladas" é uma ficção e não podia ser outra coisa, tamanho o absurdo do conteúdo.

3 de nov. de 2009

Há 1 ponto de exploração sexual infantil a cada 26 km de rodovias

Seja para comprar comida ou fumar crack, o fato é que milhares de crianças e adolescentes estão espalhados pelas rodovias federais brasileiras oferecendo os corpos por até R$ 2. No Brasil, há um ponto vulnerável à exploração sexual infantil a cada 26,7 quilômetros - isso considerando apenas os locais em que a Polícia Rodoviária Federal (PRF) já flagrou ou recebeu denúncia de menores de 18 anos submetidos à prostituição. A reportagem é de Renato Machado e Vitor Hugo Brandalise e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 03-11-2009.
Fonte: UNISINOS


Mapeamento da PRF apontou a existência de 1.819 pontos "vulneráveis" para a exploração sexual de menores nas estradas. São postos de combustíveis, bares, boates, restaurantes ou mesmo acostamento. Trata-se da quarta edição do mapeamento feito pela PRF em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), mas os dados gerais pouco variaram em relação à edição de 2007, com Minas e Rio Grande do Sul encabeçando a lista em número de pontos, com 290 e 217 respectivamente - os dois Estados, no entanto, têm grandes malhas viárias federais. Levando em conta quantidade e extensão das vias, os piores são Distrito Federal, Rio Grande do Norte e São Paulo.

Em São Paulo, há um ponto vulnerável a cada 14,8 quilômetros. Somente nos Vales do Ribeira e do Paraíba, apontados pela PRF como mais problemáticos, há 46 pontos vulneráveis. Mas o problema existe em todas as rodovias federais do Estado. Na semana passada, a reportagem flagrou, numa boate na Rodovia Fernão Dias, região de Mairiporã, um exemplo disso. Por preços que variavam entre R$ 30 e R$ 50, uma garota de 17 anos dizia fazer programas "há oito meses", para criar os dois filhos, que deixara numa cidade de Minas. Também usava o dinheiro para comprar maconha e, "ultimamente", crack.

A PRF agora vai utilizar os dados do mapeamento para dividir os locais em graus de vulnerabilidade, em parceria com o Instituto WCF Brasil. O resultado, desta vez, não será divulgado. "Achávamos que o conhecimento dos locais inibiria a atuação de criminosos. Mas constatamos que não inibiu e provocou migração para outros pontos", afirma o presidente da Comissão de Direitos Humanos da PRF-SP, Waldiwilson dos Santos. "Vamos manter sigilo para não atrapalhar as operações."

Mesmo após constatar a situação, a conexão com outros órgãos continua falha - somente a PRF tem o levantamento, impossibilitando cruzamento de dados. Das polícias rodoviárias estaduais, apenas a de Pernambuco manifestou interesse em fazer o mapeamento.

Perco a fé no ser humano quando leio notícias como essa. É inaceitável! Tais fatos deveriam ser combatidos com extremo rigor. Que absurdo. Que triste. Nem tenho dúvidas de que esse é  o resultado da ausência de políticas públicas.
Enoisa