30 de dez. de 2009

MST: Balanço e desafios para um novo ano

Final de ano é momento de fazer balanço das atividades do período que passou, avaliar os avanços e as dificuldades encontradas e começar a planejar o ano que vem chegando.

2009 vai ficar marcado na história como o ano da grande crise capitalista que assolou os mercados financeiros de todo mundo. Crise que se iniciou nos EUA, mas varreu vários países, ricos e pobres, quebrando bolsas, bancos, empresas e, sobretudo, desmoronou a hegemonia ideológica das certezas dos grandes capitalistas no seu deus Mercado, o chamado neoliberalismo.

Tivemos a triste notícia que, segundo a ONU, o número de famintos já passa de 1 bilhão de pessoas, ou seja, a cada seis pessoas uma passa fome em alguma parte do mundo. Houve ainda um aumento da concentração da riqueza e renda em todo planeta, globalizado pelo jeito capitalista de funcionar.

A derrubada das florestas pelo agronegócio e a grande quantidade de carros produzidos no último período para salvar a crise têm agravado ainda mais os problemas ambientais, obrigando o mundo a debater o aquecimento global e suas consequências para a humanidade. Além disso, a pecuária intensiva e o modelo produtivo do agronegócio, - que se baseia no uso abusivo de máquinas e venenos agrícolas - aumentaram o desequilíbrio ambiental no meio rural.

Todos esperávamos que os chefes de Estado compreendessem a gravidade da situação e que em Copenhague assinassem um compromisso de recuperação da Terra. Triste engano. Os governos dos países responsáveis pelos maiores desequilíbrios continuam iguais, cada vez mais insensatos e irresponsáveis. Afinal não querem mudar seu padrão de consumo, nem seus privilégios, pagos por toda humanidade. Como bem avaliaram a Via Campesina internacional e os movimentos ambientalistas: só a mobilização popular pode agora salvar a vida no planeta.

No Brasil, o ano foi marcado por debates importantes, como a questão das reservas do petróleo no pré-sal, que pode mudar o rumo da economia e dos problemas sociais; a atualização dos índices de produtividade, promessa assumida pelo governo Lula desde maio de 2005, que poderia acelerar a Reforma Agrária; e a redução da jornada de trabalho para 40 horas, pauta antiga dos trabalhadores, agora assumida por todas as centrais sindicais.

Também tivemos um ano marcado pela criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. Temos visto em diversos governos estaduais, que o Estado continua com posições reacionárias, judicializando os problemas sociais e criminalizando os movimentos que organizam as lutas e batalhas de resistência nas comunidades pobres das grandes cidades e do campo. O MST pagou caro, perdemos o companheiro Elton Brum, assassinado pela Brigada Militar gaúcha. E tivemos vários mandatos de prisões contra nossas lideranças.

Na luta política, a direita brasileira ampliou sua presença nos espaços que detêm hegemonia, como o Poder Judiciário, transformando o presidente do STF em mero porta-voz de seus interesses. No Congresso Nacional, além dos inúmeros casos de corrupção, a direita aumentou a ofensiva com projetos de lei que caminham na contra-mão da história, como tentativas de apropriação da Amazônia, mudanças no Código Florestal e a intenção de liberar completamente o uso e comercialização de venenos agrícolas e sementes transgênicas.

Na Reforma Agrária

Fizemos grandes jornadas de lutas cobrando o cumprimento da Reforma Agrária, em abril e agosto, mas mais uma vez fechamos o ano com poucos avanços para a Reforma Agrária. Estima-se que foram assentadas menos de 20 mil famílias, ou seja, apenas 20% da meta proposta pelo proprio Incra, de 100 mil famílias por ano. Mais de 96 mil famílias continuam acampadas, em sua maioria há mais de três anos debaixo de um barraco de lona.

Tivemos algumas melhorias nos assentamentos, como a expansão da energia elétrica, água encanada, moradia e infra-estrutura. No entanto, não houve avanços em uma questão central para o desenvolvimento dos assentamentos: a implementação de agroindústrias cooperativadas, a universalização do atendimento público de assistência técnica e uma política de crédito rural adequada aos assentados. O Pronaf tem se mostrado insuficiente para resolver os problemas dos assentados, mesmo aumentando o volume do crédito. Essa situação dificulta o aumento da renda das famílias.

Diante desse balanço, nosso papel prioritário é seguir organizando os trabalhadores para garantir o assentamento das famílias acampadas e melhorar as condições de vida das famílias já assentadas, avançando no debate e na implementação de uma Reforma Agrária popular.

Desafios para 2010

2010 nos exige o enfrentamento de muitos desafios, desde a luta geral por mudanças na politica até na luta por Reforma Agrária.

Precisamos consolidar alianças com setores do movimento social e sindical do meio urbano, já que os desafios são grandes, e exigem a mobilização de toda classe. Os temas agrários também se resolvem com a mobilização de toda classe, para alterar a atual correlação de forças politicas. Precisamos contribuir na organização, junto com as pastorais sociais, Assembléia Popular e Coordenação de Movimentos Sociais, para realização de um plebiscito pelo limite máximo da propriedade da terra no Brasil. Buscaremos também fortalecer a luta pela redução da jornada de trabalho e seguir pautando, denunciando e enfrentando a criminalização dos movimentos sociais, além de lutar para garantir que o petróleo do pré-sal pertença de fato ao povo e seus recursos sejam destinados para o combate à pobreza e investimento na educação e na saúde da população brasileira.

O próximo ano terá o desafio das eleições e, mesmo sabendo das limitações da democracia representativa burguesa, entendemos que é importante aproveitar esse momento, em que a população se envolve no pleito, para fazer um grande debate. É momento oportuno para discutir os problemas sociais e estruturais do país e pautar a necessidade da construção de um projeto popular para o Brasil. Precisamos votar nos candidatos socialistas e progressistas, comprometidos com a Reforma Agrária, e não deixar que candidaturas de direita se elejam com votos dos trabalhadores.

O Brasil precisa mostrar ao mundo no próximo período que, mais do que ser o país das Olimpíadas ou da Copa, precisa ser um país de justiça social, para todos os seus cidadãos. Um país sem analfabetos e símbolo da produção agroecológica. Um país onde não haja mais concentração de terra, nem de renda. É esse o país que desejamos a todas e todos em 2010.
[grifos do blog]

22 de dez. de 2009

''Reforma agrária deve ser entendida em forma ampla'', defende D. Tomás Balduíno

Próximo de completar 87 anos, dom Tomás Balduíno é o eterno ideólogo da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e referência intelectual dos movimentos pró-reforma agrária. O bispo considera superado o atual modelo de assentamento de camponeses, com a distribuição de lotes individuais para cada família. A proposta se parece com os Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS) defendidos pela freira americana Dorothy Stang, morta há quatro anos por pistoleiros no Pará. “A reforma agrária deve ser entendida em uma forma ampla. Não é aquela que divide o chão, mas a que inclui o posicionamento das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos quilombolas e até dos indígenas que têm um relacionamento sui generis com a terra”, defende o religioso.
Fonte: UNISINOS


Por que a CPT defende um novo estágio no programa de reforma agrária do governo?

A reforma agrária deve ser entendida de uma forma ampla. Não é aquela que divide o chão, mas a que inclui o posicionamento das quebradeiras de coco, dos seringueiros, dos ribeirinhos, dos quilombolas e até dos indígenas que têm um relacionamento sui generis com a terra. Em resumo, a terra para quem dela precisa para viver, trabalhar e conviver. Esse é o objetivo social. O outro, mais ecológico, é no sentido de preservar o bioma amazônico e, ao mesmo tempo, todos os biomas do país que estão ameaçados pelo agronegócio. O atlas deste país revela que onde houve devastação é onde se implantou o agronegócio. As áreas indígenas, camponesas e quilombolas são as mais preservadas. Ao invés de estimular com subsídios, com grandes verbas o agronegócio, o governo deveria apoiar e defender as organizações populares na linha da convivência com a terra. Sobretudo com o bioma amazônico, que é o responsável pelo equilíbrio planetário, pela própria estabilidade do planeta em termos climáticos.

Para onde a reforma agrária, na sua opinião, deveria caminhar?

Nós estamos superando cada vez mais a ideia burocrática de uma reforma agrária que divide em quinhões a terra. Não é isso que é o conceito amplo de reforma agrária. Defendemos um novo estágio nesse processo. O consenso que vem vindo é na linha da soberania territorial e alimentar. Até uma reforma agrária na base da concessão territorial, em vez de cessão ou venda da terra — o que faria continuar o mesmo modelo de dividir o solo por famílias e depois pulverizar pelos herdeiros, o que pode fortalecer de novo o latifúndio.

O modelo que o senhor defende é diferente não só do que vem sendo aplicado pelo governo, mas até do que defendem alguns setores dos movimentos pró-reforma agrária…

Já houve tentativa de se consolidar e se estruturar esse novo modelo. Mas há muita resistência das bases populares. O pessoal quer o próprio chão. Mas acho que os exemplos dos povos tradicionais são os que mais realizaram a melhor convivência com a mãe terra, que são os indígenas, os negros, os quilombolas. Não é propriedade do negro fulano ou do cacique tal ou qual, mas a terra indígena e quilobola. É isso que está influindo no novo conceito ampliado de reforma agrária. Não tem ainda uma cartilha ou um livro destrinchando esses conceito que estou falando porque ele está em formação.

Esse modelo parece com o modelo que a irmã Dorothy Stang tentava implantar no Pará quando foi morta?

Está nessa linha. Mas, sobretudo, na linha que inspira os movimentos ambientalistas que reformam o modo de ser camponês, e o que prevalece nas defesas de movimentos como o Via Campesina e outros movimentos camponeses em nível internacional.

Há uma crítica muito forte à reforma agrária, dizendo que não há qualidade de produção nos assentamentos. Existe incompatibilidade entre a concessão coletiva e a produtividade?

Não se pode dizer isso, porque não há esse modelo ainda implantado. O que há são as reservas indígenas que não visam a produção. O objetivo do modelo de reforma agrária não é o lucro, não é o capital, apesar de não excluir a produção. Vemos muitas vezes que a produção coletivista é melhor que a capitalista quando tem todos os recursos necessários para isso. A fábrica de leite do MST nada deve a qualquer organização capitalista. De certa maneira, tem melhor qualidade. Nós queremos, em primeiro lugar, a dignidade dessas populações assentadas. A estatística mostra que quem alimenta a mesa do brasileiro é o pequeno produtor.

O programa de reforma agrária já enfrenta muita resistência no parlamento, no governo, na Justiça. Um projeto coletivista não vai complicar ainda mais a implantação?

Seria se fosse o único, se fosse impositivo, se fosse ou isso, ou nada. Mas é uma proposta entre outras. Inclusive com a de conviver com a terra que é de propriedade do pequeno produtor. É uma questão de justiça social.

Reforma agrária, falácias e preconceitos

"Os dados apontam o avanço da democratização do acesso à terra, tarefa obrigatória de todo país. É o caminho que buscamos", escreve Guilherme Cassel, ministro do Desenvolvimento Agrário, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 06-04-2009.
Fonte: UNISINOS



O professor Zander Navarro escreveu um artigo surpreendente decretando que as políticas de reforma agrária são irracionais e desapareceram da agenda dos debates sobre desenvolvimento. A surpresa fica por conta do alto grau de desinformação expresso no texto de um pesquisador ligado à área do desenvolvimento rural.

Navarro faz denúncias genéricas sem apresentar um só dado para sustentar suas posições. E aponta uma suposta interdição do debate, atacando colegas pesquisadores.

O que fica evidente na sequência de ataques disfarçados de argumentos é que o olhar do autor é que parece estar fora do debate. Ele procura fazer da desinformação uma virtude e mal consegue disfarçar seu preconceito ideológico em relação a um problema histórico do Brasil.

Essa mistura de desinformação e preconceito aparece, por exemplo, quando reclama que o Brasil é o único país que ainda realiza reforma agrária. O que não diz é que isso ocorre porque nossa elite urbana e rural nunca permitiu que ela fosse feita antes. A esmagadora maioria dos países enfrentou esse tema ainda no século 19 ou no início do século 20. É sintomático que a resistência expressa no artigo seja maior em países como Brasil, ainda marcados por profundas desigualdades sociais.

Também é sintomático que os adversários da reforma agrária separem essa agenda do debate sobre o modelo de desenvolvimento rural dominante nas últimas décadas. Um modelo que empurrou milhares de pessoas para as periferias pobres das grandes cidades e trouxe graves problemas ambientais.

Desde os anos 1970, as políticas voltadas para a agricultura obedeceram a uma lógica específica de modernização tecnológica. Por meio dela, procurou-se aumentar a produtividade da força do trabalho empregada no cultivo e na criação de animais mediante o uso de tecnologias que substituíram o trabalho humano pelo emprego intensivo de máquinas e insumos. Essa concepção favoreceu o monocultivo em grandes extensões de terra.

A combinação de uma estrutura agrária concentrada, políticas agrícolas e padrão tecnológico excludentes gerou o empobrecimento de milhares de famílias de pequenos e médios agricultores, a perda de biodiversidade e a contaminação de rios e pessoas pelo uso intensivo de agrotóxicos.

É curioso que Navarro reclame de uma suposta "interdição" do debate e proponha exatamente isso. A proposta não é nova. Em 1992, a FAO foi pressionada pelos EUA para retirar o tema da reforma agrária de sua agenda. Essa pressão se deu no contexto da hegemonia das políticas do chamado Consenso de Washington.

Na América Latina, a maioria dos países adotou esse receituário com resultados desastrosos. Duas décadas depois, esse modelo que se reivindicava como porta-voz da modernidade acabou mergulhando o mundo em uma crise gravíssima. Se há algum debate interditado é sobre essa história que muitos hoje tentam sepultar.

O governo brasileiro, com o apoio de organismos internacionais como a FAO, está debatendo propostas para um novo padrão de desenvolvimento rural. Em 2006, após 27 anos de silêncio sobre o tema, foi realizada em Porto Alegre a segunda Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural. Em junho de 2008, realizamos a primeira Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, em Olinda. Esses debates, com ampla participação de agricultores, quilombolas, povos indígenas e suas entidades, estão ajudando na implementação de políticas de combate à pobreza no campo e de construção de um rural com gente, trabalho e renda.

O Brasil já contabiliza 43 milhões de hectares destinados à reforma agrária nos últimos seis anos, dado que o transforma no país com a maior área de assentamentos em todo o mundo. De 2003 a 2008, 519.111 famílias foram assentadas e 3.089 assentamentos foram implantados.

Segundo dados preliminares do Censo Agropecuário 2006, houve um aumento do número de estabelecimentos rurais nos últimos dez anos, passando de 4.859.865 para 5.204.130, um crescimento de 7,1%.

Os dados apontam o avanço da democratização do acesso à terra, uma tarefa obrigatória de qualquer país, assim como a escolha de uma forma de desenvolvimento capaz de fazer do campo um espaço de paz, produção e justiça social, incompatível com práticas como o trabalho escravo e a destruição do meio ambiente. Esse é o caminho que estamos buscando, não o de arautos de uma falsa modernidade que se perderam no tempo e não conseguem mais definir quem são nem para onde vão.

A reforma agrária e o MST, entre teses destrutivas e os direitos que cabem às/os sem-terra

Antônio Cechin e Jacques Távora Alfonsin comentam o debate, travado no jornal Folha de S. Paulo, sobre a reforma agrária, entre Zander Navarro e Plínio de Arruda Sampaio. Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais. Jacques Távora Alfonsin é advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.

Fonte: UNISINOS


As opiniões de Zander Navarro e de Plinio de Arruda Sampaio, publicadas na Folha de São Paulo, dia 5 deste mês, a primeira contrária e a segunda a favor da reforma agrária, continuam repercutindo. Já foram analisadas, inclusive pelo Ministro de Desenvolvimento Agrário. Já que a atuação do MST aparece em todas elas como um elemento-chave a ser levado em conta, vale a pena considerar-se o que ficou dito, igualmente, contra e a favor dele.

Zander baseado em seus estudos, como refere no início do seu texto, defendeu nada menos do que treze teses de impugnação da causa, da ideologia, do método de arregimentação dos seus integrantes, da forma como são liderados, e do modo como esse movimento age. Negou que ele seja vítima de criminalização; denunciou, como um dos seus maiores defeitos, o caráter não institucional de que ele se reveste, não lhe reconhecendo, sequer, continuar sendo um Movimento Popular. Dá uma aula sobre o que ele acha que o MST é, e não hesita em dizer como ele deveria ser.

Plínio, ao contrário, preferiu analisar o MST, baseado em fatos e, no que mais interessava ao tema proposto pela Folha, no uso e na exploração da terra. Não ignorou o contexto histórico da realidade hostil e opressiva a que está submetido o povo sem-terra, em nosso país; criticou os poderes públicos, de forma particular o da União, pela preferência que adotou em relação ao nosso modelo agrícola; sublinhou o poder decisivo das transnacionais sobre o campo brasileiro (soja, álcool de cana, carne, madeiras); lamentou a extensão da grilagem (agora legalizada) das terras da Amazônia, o destino suspeito de transposição do Rio São Francisco, as vantagens inerentes à consolidação da agricultura familiar. Identificou o MST como um movimento socialista, impugnando, em números, a versão corrente sobre o que aconteceu na Fazenda Cutrale; conclamou vários atores sociais a se empenharem em favor da reforma agrária até para exigir do Judiciário maior rapidez nas desapropriações e fiscalização das violências praticadas contra as/os sem-terra nas ações de reintegração de posse.

A simples comparação das idéias aí em aberto conflito, parece indicar que a primeira é muito mais acadêmica, teórica e subjetiva do que a segunda. Para Zander o que o MST é, destoa do modelo que a sociologia (ele também, por óbvio) indica que esse Movimento deva obedecer. Para Plinio, o que o MST é, revela simplesmente uma forma de organização social necessária à defesa do povo sem-terra e da reforma agrária.

Desde logo, um primeiro questionamento se impõe à leitura dos dois artigos. O que é mais importante? A conformidade exigida pelo modelo teórico, acadêmico, “científico(?)”, previamente receitado na bula da primeira perspectiva, ou o remédio urgente e necessário de que carece uma doença social grave, vitimando multidões pobres que padecem, historicamente, de desrespeito?

Se as duas opiniões forem testadas à luz dos objetivos da reforma agrária, dos direitos humanos fundamentais do povo sem-terra, e até do modelo que temos de Estado democrático de direito, no Brasil, as treze teses de Zander sofrem de uma auto-suficiência incompatível até com a ciência da qual ele se socorre.

Nem é muito difícil se provar esse fato, podendo se dispensar aqui, até o grau de desigualdade dos serviços que ao povo sem-terra prestaram um e outro dos autores que assinam os artigos publicados pela Folha.

Zander insiste bastante no fato de que um dos maiores defeitos do MST consiste em ele se encontrar à margem da institucionalidade; verbera a circunstância de, usando esse Movimento recursos públicos, os Poderes responsáveis por tais recursos não cobrarem essa institucionalidade, já que com ela, num regime democrático, o MST “obteria alguma tolerância pública.” Ele qualifica como ridícula, por isso mesmo, entre outras razões, a queixa das/os sem-terra relativa à criminalização orquestrada e indiscriminada, no país e no Rio Grande do Sul, contra elas/es; entende que a reforma agrária deve alcançar, se alcançar, apenas o nordeste brasileiro.

Além do desconhecimento que o autor revela aí, do que a Constituição Federal e as leis do país dispõem a respeito da liberdade que o povo, ou parcela dele tem, de se associar, com personalidade jurídica, ou não, algumas contradições do seu libelo contra o MST acabam por desautorizar toda a sua crítica.

A começar por um princípio jurídico elementar, respeitado mais por sua obviedade do que pela sua previsão legal (art. 476 do código civil), a ninguém cabe exigir o cumprimento de uma obrigação inserta num contrato, enquanto não cumprir, por sua parte, a obrigação a que se vinculou. A Instituição Estado brasileiro está em mora no cumprimento das suas obrigações para com o povo sem-terra desde que esse país, mal ou bem, foi reconhecido como nação independente no mundo todo. Se não cumpre a obrigação que lhe cabe, que direito lhe assiste de exigir o cumprimento da “obrigação” de suas/seus cidadãs/os?

Outra analogia bem próxima do tema que nos ocupa aqui, pode ser conferida na conduta dos latifundiários brasileiros que, mesmo descumprindo com a sua obrigação de respeitar a função social inerente ao seu direito de propriedade rural, condenam o MST, assim como faz o Zander, por ele não cumprir a “obrigação(?)” de se institucionalizar. Desde o evangelho, todo o mundo sabe que quem tem uma trave no próprio olho não pode censurar o argueiro que se encontra no olho alheio.

Ora, institucionalizado ou não, é justamente pela iniciativa das instituições públicas e as privadas vinculadas aos latifundiários, que as/os agricultoras/es sem-terra, filiadas/os ou não ao MST, têm sofrido historicamente de uma repressão judicial e policial-militar tão duras, ou mais, do que as que sofreram na época da ditadura. E isso, em pleno exercício do modelo de “democracia” que o Zander defende, ou seja, aquele que em vez de respeitar e promover a organização popular lhe outorga (como favor talvez?), “alguma tolerância”.

Como uma democracia a esse nível tem legitimidade ou autoridade ético-jurídica para exigir “institucionalização” de qualquer movimento popular, esse autor não explica, como nem deixa muito claro de resto, o que ele entende por institucionalidade.

Assim, uma primeira e fundamental contradição do seu raciocínio reside nisso. Ele acaba por justificar a ausência de personalidade jurídica, a ausência de um CNPJ para o MST, não só pelo fato de latifundiários e Poder Público descumprirem suas obrigações para com o povo sem-terra, como pelo tipo de democracia que ambos, mais ele, entendam contemplar esse povo; essa espécie de “democracia(?)” já na democracia autêntica aí nem existe. É até bem melhor que o Movimento se defenda desse tipo original de “regime” jurídico-político desenhado pelo autor, tentando quando menos denunciar o quanto há, aí sim, de “intolerável” autoritarismo nesse arremedo de obediência à soberania do povo (art. 1º parágrafo único da Constituição Federal).

Nem seria necessário lembrar, a propósito, que a democracia, para valer, a história o comprova, nasce quase sempre depois de o povo sofrer e até morrer por se insubordinar, exatamente, contra os poderes da “instituição” legalizada dos regimes anteriores. Quem não sabe, ou até viola, o sentido e as referências do que seja instituição, e instituição democrática, não pode exigir que outros se “institucionalizem”.

Ignorando, também, que o poder constituinte do povo não morre, durante a vigência do constituído, o autor reserva para os movimentos populares, exigindo-lhes o que ele entende por institucionalidade, apenas o poder regulatório próprio das Constituições e das leis, castrando todo o poder emancipatório que elas contêm, um vício nada moderno, conservador e até reacionário, como Boaventura de Sousa Santos tem demonstrado, em lições bem menos reducionistas do que a do sociólogo contrário à reforma agrária e ao MST.

A manipulação vergonhosa desse poder regulatório tem sido responsável por não poucas violações dos direitos humanos do povo sem-terra e por muitos prejuízos às organizações populares que o apóiam. A violência e a desonestidade com que a bancada ruralista impôs à Constituição Federal a expressão “propriedade produtiva” no art. 185, inc II da Constituição Federal, como José Gomes da Silva historiou em detalhes na sua obra “O buraco negro”, dá bem um exemplo “institucional” disso. O relatório original da CPMI da terra, igualmente, todo ele feito de apoio à reforma agrária, foi substituído por outro, ao feitio e ao interesse exclusivo daquela bancada, que convenceu a “instituição” Tribunal de Contas da União que toda e qualquer ONG, pessoa jurídica pública ou privada, que apoiasse financeiramente o MST, era suspeita de corrupção ou desvio de dinheiro. Pura mesmo, só aquela bancada, caloteira histórica de dívidas tributárias, defensora de grilagens e de todo o tipo de depredação da terra e de dominação de gente no campo, capaz de obstruir até a votação de projetos contrários ao trabalho escravo.

Assim, a ausência de “institucionalidade” do MST, não impediu e nem continua impedindo que as pessoas jurídicas afinadas com os objetivos e a ação da Movimento, possam prosseguir celebrando convênios, participando de licitações, obtendo fundos, sejam públicos ou privados, com que ajudavam o MST. Imobilizadas durante meses por fiscalizações de órgãos públicos, têm de desviar toda a sua atenção para responder questionamentos que concluem aberrações do tipo diminuição do valor de diárias (em mais de metade, às vezes) devidas a alunas/os filhas/os de sem-terra, em suas escolas, pelo fato de, por serem pobres, “estarem habituadas com pouco”...

Se isso acontece com pessoas jurídicas “institucionalizadas”, conforme o modelo zanderiano, o que não ocorreria com o MST se ele entrasse em tal armadilha?

Surpreende, por outro lado, numa época em que se estuda e questiona tanto o controle social, a democracia econômica e participativa, como características próprias de um Estado verdadeiramente democrático e de direito, pretender-se enfiar o barrete rígido da institucionalidade justamente num Movimento Popular que goza do prestígio e da companhia atuante de grande parte de personalidades que integram, ou não, pessoas jurídicas públicas e privadas “institucionalizadas” que, não pela informalidade dele, deixam de apoiar e auxiliar em suas iniciativas, exatamente nos momentos em que ele mais sofre de agressão aos direitos humanos de suas/seus integrantes.

Sua militância encontra apoio em outros testemunhos históricos e muito qualificados de defesa das/os sem-terra como a de dezenas de ONGs do Brasil e do mundo, Comissões de direitos humanos, CDDPH (Conselho de defesa dos direitos da pessoa humana), CPT, ADJ (Associação de Juízes para a democracia) Dom Pedro Casaldaliga, Dom Tomas Balduino, Fabio Konder Comparato, Oscar Niemeyer e, entre muitos que já nos deixaram, Paulo Freire, Florestan Fernandes, Milton Santos e José Gomes da Silva, para lembrar apenas algumas das muitas pessoas jurídicas e personalidades a quem o país mais deve.

Todas essas organizações e pessoas, pelo jeito, são tão míopes e ingênuas, fazem parte ou, pelo menos, estimulam um movimento ideologicamente atrasado e ditatorial, como Zander seja, as suas convicções sobre esse Movimento Social? Se ele não se deixa questionar por nada, não é de admirar que o seu posicionamento, já no passado, tenha provocado tanto mal ao povo sem-terra.

Não se pode esquecer que é baseado nos estudos e nas reiteradas críticas de sua autoria ao MST, que a “instituição” Ministério Público do Rio Grande do Sul vem promovendo uma das maiores e mais violentas perseguições oficiais contra as/os sem-terra que o integram. Em 2007, numa decisão unânime do seu Conselho Superior, decidiu “dissolver” (!) o MST, coisa que, posteriormente, foi revogada, tal o absurdo pretensioso, totalitário e inconstitucional que aí se revelava; este ano, no desdobramento dessas iniquidades, o povo sem-terra chora a morte de um dos seus companheiros, Elton Brum da Silva, ocorrida em São Gabriel, efeito de uma “institucional” execução judicial.

Note-se o tamanho da contradição aí presente. Quem condena o MST por ele não se adequar à institucionalidade, é quem fornece ao Poder institucional, dotado da maior agressividade contra as/os sem-terra, as armas ideológicas capazes de causar as maiores perdas, os maiores danos às pessoas pobres do campo, organizadas em defesa das suas vidas, dignidade e cidadania.

Zander jamais quereria esse efeito, como deu a entender numa entrevista constrangida que já tinha concedido a um jornal de Porto Alegre, antes do assassinato do Elton. Nessa oportunidade, solidarizava-se com o MST (?!), depois que outras violências tinham sofrido as/os suas/seus integrantes, também essas baseadas em execuções judiciais sustentadas, quando menos em parte, nas opiniões dele.

Que essas têm pesado bastante, portanto, para seu pesar, no abuso de autoridade e poder que aquelas violências têm revelado, isso pode ser provado no próprio teor das petições redigidas pelos promotores gaúchos. Não adianta, depois, chorar o leite derramado. O esforço retórico que as sustenta têm nesse autor, senão a principal, uma das mais importantes bases argumentativas.

É muito contraditória, igualmente, a defesa da obrigação de o MST se institucionalizar, quando o autor opina sobre a reforma agrária, considerando-a quase como desnecessária. Acontece que essa política pública, ressalvada a hipótese de se desobedecer flagrantemente tudo quanto ainda resta de fundamentação constitucional nela, tem toda a sua execução dependente do exercício institucional do Poder do Estado. Então, é oportuno perguntar-se, questionando o autor da crítica ao MST e à reforma agrária: tudo quanto ele vê como nociva prática do MST, por não se institucionalizar, se transforma em virtude quando o Poder Público não institucionaliza as políticas que tem a obrigação de institucionalizar em favor do povo pobre do campo?

Zander também considera todos os méritos do MST como fictícios, seja em tamanho de poder, seja em prestígio, seja em número dos seus integrantes. Essa é – mesmo se descontando, mais uma vez, quanto há de “distração” ou “esquecimento” aí presentes, sobre os efeitos suprapositivos que a dignidade humana impõe ao próprio ordenamento jurídico, e ainda que se desconsidere o que pode haver de “rancor” nessa crítica, como o ministro de desenvolvimento agrário chegou a denunciar na análise que fez dela – uma contestação àquelas acusações, seguramente bem mais qualificada do que a nossa, já tinha sido antecipada na mesma “Folha”, um dia antes (edição de 4 de dezembro corrente).

Sob o título de “A contra-revolução jurídica”, Boaventura de Souza Santos não usa os mesmos óculos ideológicos de Zander para ver a realidade injusta e ilegal que oprime o povo sem terra, como ela efetivamente é; não como ela precisa ser disfarçada para se acomodar ao que se estuda e pensa sobre ela.

Justamente naquilo que constitui o eixo central da acusação de Zander contra o MST - institucionalidade - o conhecido pensador denuncia o que esse tão valorizado pressuposto legal está fazendo contra o Movimento: “...anulação de turmas especiais de assentados da reforma agrária (convênios entre universidades e Incra), de escolas itinerantes nos acampamentos do MST, de programas de educação indígena e de educação no campo.” (...) “Criminalização do MST. Considerado um dos movimentos sociais mais importantes do continente, o MST tem vindo a ser alvo de tentativas judiciais no sentido de criminalizar as suas atividades e mesmo de dissolve-lo com o argumento de ser uma organização terrorista.”

Finalmente, Zander encerra seu texto, diagnosticando como agonizante a situação atual do MST. Não descarta a sua extinção. Então, já é hora, também, de concluirmos nossa modesta defesa do MST e da reforma agrária. Se for “pelos seus frutos que os conhecereis” como diz o evangelho em nova lembrança oportuna para o caso, parece não haver dúvida sobre quem deve ser ouvido, entre os articulistas da Folha, seja no que se refere ao MST, seja no que se refere à reforma agrária.

Se o mau agouro de Zander se cumprir, coisa muitíssimo improvável, por tudo o que acima se referiu, não será na festa que a CNA e seus súditos fiéis presentes nos parlamentos e nas “instituições” vão fazer, a respeito, nem servirá de seu coveiro, o Plinio de Arruda Sampaio. Os frutos do trabalho deste, pelo testemunho de toda a sua vida, são de vida e não de morte, são de enfrentamento da injustiça social mantida e preservada pelo próprio modelo institucional que se quer impingir ao MST, são expressões de um sonho capaz de criar tudo quanto está ausente no texto que lhe serviu de contraponto, um outro mundo possível, como o Fórum Social Mundial tem ensaiado perseverantemente, uma nova sociedade, na qual se partilhe, com a justiça capaz de construir a paz, para alegria e satisfação de todas/os, a terra, a casa, o pão, a verdade e o amor.

Artigos de Zander Navarro (contra) e Plinio de Arruda Sampaio (a favor) da Reforma Agrária

Artigos publicados no Jornal Folha de São Paulo, em 5/12/2009


Treze teses para entender o MST

ZANDER NAVARRO

Enredado em laranjais, desmatamentos ilegais, a ameaça de uma CPI e infindáveis ações, muitas conduzidas sob impressionante primarismo político, talvez seja oportuno um sucinto balanço sobre o MST, um quarto de século após a sua fundação. Como estudo a organização antes mesmo de ser formada, em 1984, ofereço algumas teses para aqueles que têm interesse nos processos sociais rurais e, particularmente, curiosidade sobre o movimento.

Sobre a sua natureza: não obstante o nome, o MST deixou de ser um movimento social há muitos anos, pois logo se estruturou como uma organização, centralizada no essencial (as formas de luta política e as principais bandeiras), mas descentralizada no varejo, ou seja, liberando a criatividade local.

Sociologicamente, movimentos sociais supõem algum grau de espontaneidade na ação e uma liderança flexível, o que o MST não apresenta desde os anos 80. Já as organizações, entre outros aspectos, criam carreiras, e atualmente o Movimento mobiliza centenas de militantes que não sabem desenvolver outra atividade, senão a agitação social.

Os "tempos do MST": a organização nasceu, de fato, na segunda metade dos anos 90, quando passou a frequentar a agenda nacional. Antes era sulista e menos conhecida.

Na mesma época, alterou o seu mecanismo principal de financiamento, até então provido pela generosidade de igrejas europeias, pois descobriu os furos das burras do Estado, com o início do processo de reforma agrária e a constituição do MDA, entre outras fontes estatais, das quais extrai os fundos, via entidades fantasia.

Mas continua recebendo recursos externos. A chance perdida: a "Marcha a Brasília", em abril de 1997, foi o único momento em que uma organização popular encurralou o governo de Fernando Henrique Cardoso, forçado a receber os sem-terra no Planalto. Seria o momento ideal da institucionalização, pois foi o auge da influência e do prestígio do MST. Poderia se transformar em agremiação sindical dos mais pobres do campo.

Seus líderes, contudo, preferiram a semiclandestinidade, contra uma sociedade que afirmava, cada vez mais, a sua natureza democrática. Sem surpresa, desde então os impasses se multiplicaram, pois esta esquizofrenia política não teria como prosperar.

As alianças na sociedade: cresceram no final da década passada, mas vêm estiolando nos anos recentes. Parece que a população foi cansando de tantas estrepolias não democráticas. Nascido no campo petista, onde está firmemente enraizado, mesmo o PT parece enfastiado com uma organização autoritária que perdeu a sua razão de existência e atira a esmo, enfraquecida porque não tem mais uma agenda própria.

Atualmente, apoiam-no setores do catolicismo radical, pequenos grupos em universidades públicas, notadamente cientistas sociais, algumas facções partidárias e, especialmente, estudantes. Demanda social pela reforma agrária: embora voz isolada, sustento que não existe mais demanda significativa, em quase nenhuma região, que justifique um programa nacional de reforma agrária.

Quando muito projetos regionais teriam alguma inteligibilidade, como no Nordeste, por exemplo. É preciso ter a coragem de mudar tudo nesta área, sob pena de manter um surrealismo institucional que desperdiça recursos públicos acintosamente, pois movido unicamente pela inércia e o corporativismo.

Ilusões públicas: o tamanho aparente do MST é muito maior do que a sua expressão real, sendo esta uma de suas armas decisivas para se manter à tona. Usando aliados e espaços da sociedade, amplifica fatos menores e eventos sem expressão, sugerindo ter uma força desmedida. Estrangeiros se confundem com esta paralaxe política, e no exterior se lê com frequência a risível afirmação sobre o "maior movimento social do planeta".

Não apenas parece maior do que é, mas o MST tem, na realidade, reduzido sua capacidade de recrutamento e mobilização. Se observadas criteriosamente, as ocupações de terra e outras ações têm diminuído, em número e tamanho. Fosse viável apurar, se concluiria, além disto, que a maior parte daqueles que nelas participam não são sem-terra, mas assentados e seus familiares, recrutados frequentemente sob formas variadas de intimidação.

O poder da propaganda: no melhor estilo "agit-prop" dos antigos partidos comunistas, o MST se apropriou de parte da sociedade civil, a quem domina e usa os recursos a seu favor.

Como é uma "organização dos pobres", somente uma minoria contesta o autoritarismo do movimento, desgostosos com posturas que algumas vezes beiram o protofascismo. Existindo um fio capilar que perpassa o MST, o campo petista e, mais genericamente, "a esquerda", poucos confrontam aqueles comportamentos, temendo a represália política.

O entrave principal: o MST não se moderniza porque é preso à visão neolítica de seu dirigente maior, que é, de fato, o dono da organização, para usar um termo apropriado, embora deselegante. Egresso do antigo MR-8, nos anos 70, o leninismo de João Pedro Stédile é que tem impedido o MST de se tornar um ator social relevante.

Formou à sua volta uma claque cuja lealdade cultua seu líder e não admite dissidentes. Que o diga José Rainha, o dirigente que afrontou Stédile e acabou exilado no Pontal do Paranapanema, juntamente com o seu MST do B.

"Demonização do MST": são tolas as afirmações sobre iniciativas que supostamente pretenderiam criminalizar a organização. É certo que há setores do empresariado rural que gostariam de liquidar o MST, refletindo sua histórica truculência, mas são irrelevantes em sua expressão social. Denúncias sobre criminalização soam ridículas, em face dos inúmeros atos de óbvia ilicitude. O argumento ignora a democratização e seus imperativos, sendo um absurdo lógico. Ou almejamos uma democracia sob a qual os preceitos legais não valeriam para alguns?

O maior desafio: qual a legitimidade do MST? Ninguém sabe, embora tantas vozes arvorem sua existência. Seus supostos líderes foram escolhidos quando e por quem? E sob qual espaço público, como seria esperado em uma sociedade democrática? Sem legitimação, por que se curvar às suas imposições? Qual é a base social do movimento, alguém saberia dizer? Aqueles que seguem suas ações, militantes ou simpatizantes, fazem-no voluntariamente, porque acreditam no MST, ou porque não têm outra escolha, pois recrutados em assentamentos sob seu domínio, onde controla recursos (públicos) e seleciona politicamente os assentados?

A grande pergunta: é um enigma que as autoridades não exijam a institucionalização do MST. Sobrevivendo primordialmente dos fundos públicos, o Estado tem o direito, senão o dever, de impor tal exigência.

Os requerimentos da transparência e publicização são repetidos monotonamente para todos os outros atores políticos, mas, estranhamente, ao movimento é permitido permanecer alheio à mesma institucionalidade. Se integrado, seriam legítimos seus líderes e as reivindicações, e suas disputas sociais se tornariam parte do ordenamento democrático, obtendo alguma tolerância pública. Se o movimento se recusa a esta mudança, preso a um bizarro fetiche ideológico de origem, somente o governo poderá impô-la, bastando ameaçar o acesso aos fundos públicos.

A vitória principal: na realidade, não tem sido manter viva a reforma agrária, ainda que sob crescente esgarçar. A maior vitória do MST é essencialmente política. Qual seja, mudar a correlação de forças no campo, o que é evidenciado por fato incontornável: não existe hoje nenhuma propriedade rural protegida, caso o MST decida conquistá-la. Com a democratização, a Justiça se tornou mais compreensiva e mesmo a repressão policial foi abrandada, deixando de registrar a inominável violência do passado.

Sob tais condições, a organização conquista o imóvel que ambicionar. A ironia, contudo, é que esta virada vem ocorrendo quando a demanda pelo acesso à terra desaba em todos os rincões rurais, erodida pela urbanização. Uma vitória pírrica, pois quando finalmente viável, a reforma agrária estancou, já que os interessados debandaram.

E o futuro? O MST se defronta hoje com o seu ocaso e tem apenas um caminho à sua frente. Qual seja, a sua institucionalização, organizando-se a favor do desenvolvimento rural e privilegiando os mais pobres das áreas rurais. Mantendo-se como é atualmente, apenas acentua sua lenta agonia, ainda que tantos cientistas sociais ingênuos propaguem manifestações de inacreditável desconhecimento sobre o mundo rural brasileiro. Nascido para defender a reforma agrária, esta viu passar o seu tempo histórico. Avançou o que foi possível, mas encontra em nossos dias os seus limites de necessidade.

Ainda sem sucesso, o MST tem procurado afirmar uma nova agenda ("ódio à ciência, ódio à agricultura moderna, ódio ao empresariado rural"), em nítido desespero demonstrado por tantas iniciativas delirantes, seja por se manter sob um não democrático anacronismo organizacional, seja por defender uma ideologia antimoderna. Se persistir neste rumo, apenas apressará o seu desaparecimento.

ZANDER NAVARRO, 58, mestre e doutor em sociologia, é professor associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e pesquisador visitante do Instituto de Estudos sobre o Desenvolvimento da Universidade de Sussex (Inglaterra). Atualmente integra a Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.
 
 
As duas novas reformas agrárias

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO

Reforma-se algo que não está funcionando a contento. Altera-se então a forma de alguma coisa, sem alterar sua substância. Por isso mesmo, uma mesma coisa pode ser reformada várias vezes. Com a estrutura agrária acontece exatamente o mesmo.

Todas as vezes em que ela emperra a realização do projeto de algum grupo social importante, esse grupo propõe uma reforma agrária.

Na época moderna, o motivo principal das reformas agrárias foi a rigidez da estrutura agrária herdada da Idade Média porque impedia o pleno funcionamento do mercado capitalista e das instituições capitalistas no campo. De modo geral, essas reformas agrárias foram distributivistas -promoviam a desapropriação de grandes latifúndios e seu parcelamento em lotes familiares.

Nos anos 50 do século passado foi esse tipo de reforma agrária que entrou na agenda política do país, proposta apresentada pelas demais forças progressistas, racionalizada pela Cepal, sob o argumento do atraso do setor agrícola e dos seus efeitos no processo inflacionário, e incorporada pelos governos que "compraram" a ideia do presidente Kennedy, o qual viu a possibilidade de evitar a propagação da Revolução Cubana num processo moderado de distribuição das terras dos latifúndios latino-americanos.

A proposta de reforma agrária deu ensejo a um intenso debate teórico em torno do problema da terra. O golpe de 1964 encerrou o debate, o qual só foi reaberto 20 anos depois, agora sustentado por novas organizações populares e novos partidos de esquerda. Muitos intelectuais -inclusive os que hoje a renegam- encarregaram-se de justificá-la teoricamente.

Não se tratava mais da reforma de 1964, porque os militares, nos seus 20 anos de governo, haviam realizado a modernização do campo sem distribuição massiva de terra, porém a um preço social e ecológico altíssimo. Tratava-se de corrigir essas distorções. Portanto, tratava-se agora de reforma agrária social, destinada a humanizar o capitalismo agrícola e a preservar o meio ambiente.

Hoje o governo Lula praticamente enterrou esse tipo de reforma agrária. Por isso os movimentos populares foram levados a radicalizar sua pressão sobre a terra. Além das ocupações, promoveram marchas, fechamento de estradas, danificação de pedágios e, ultimamente, danificação de instalações e plantações de propriedade de grandes agronegócios. Em uma sociedade anestesiada, incapaz de sensibilizar-se por argumentos racionais, que se move unicamente pressionada por gestos ostensivos, tais atitudes se justificam pelo estado de necessidade, pois não há outra forma de chamar a atenção para o descaso criminoso do governo com a população rural.

Qual a leitura a ser feita então a respeito de fatos como a derrubada de laranjais da fazenda Cutrale; a danificação das mudas de transgênicos na Syngenta; a ocupação dos latifúndios do banqueiro Dantas no Pará?

Esses e outros gestos publicitários visam bloquear um processo de reforma agrária atualmente em plena marcha e, ao mesmo tempo, propor um projeto alternativo de reforma. O processo de reforma a ser bloqueado está sendo executado aceleradamente.

Origina-se na contrarrevolução neoliberal dos anos 90 e na nova divisão internacional do trabalho que dela decorreu.

Essa nova divisão alterou o lugar da economia brasileira no mercado capitalista internacional e isto está a exigir a transformação rápida da sua atual estrutura agrária, a fim de que os grandes agronegócios internacionais montem uma formidável economia exportadora de quatro produtos altamente demandados pelas economias que lideram a nova fase do capitalismo -soja, álcool de cana de açúcar, carne e madeiras.

O grande capital internacional assumiu por conta própria a realização dessa reforma e a está implementando, mediante a compra de terras e de empresas agrícolas, de que é exemplo a compra da Usina Santa Elisa pelo grupo Dreiffyus.

Por ação e por omissão, o governo Lula apoia entusiasticamente essa nova reforma agrária. Por omissão, quando paralisa o raquítico programa de assentamentos da "reforma agrária social"; por ação: quando edita leis que permitem legalizar 67 milhões de hectares de terras griladas na Amazônia, a fim de que os grileiros (convertidos em proprietários legais) as vendam aos grandes agronegócios para produção de soja e para criação de gado nessas terras; quando realiza pesados investimentos na transposição das águas do rio São Francisco, a fim de criar uma economia exportadora de frutas tropicais, comandada pelos grandes agronegócios e destinada a países do hemisfério norte; quando prorroga a entrada em vigor de leis que protegem as florestas.

Requisito indispensável para o êxito dessa reforma agrária dos ricos é calar os movimentos sociais do campo, especialmente aquele que, aqui e no exterior, simboliza a luta da população pobre pela terra: o MST. O capital transnacional não vai aonde pode correr riscos.

O serviço que os intelectuais hoje dedicados a desmoralizar o MST prestam a essa nova reforma agrária consiste em fornecer argumentos pseudamente racionais para justificar a criminalização desse movimento.

A outra reforma agrária -a dos movimentos autênticos do campo e das forças sociais progressistas- visa contrarrestar a reforma concentradora dos agronegócios e atender às necessidades de 6 milhões de famílias pobres do campo. Trata-se de consolidar a agricultura familiar -que responde tanto pela maior porcentagem da produção de alimentos quanto da oferta de empregos no campo e de desapropriar todos os imóveis de tamanho superior a 1.000 hectares, a fim de redistribuir essas terras à população rural sem terra.

O MST e a CPT (órgão da CNBB) levantaram essa bandeira, cabendo às forças progressistas que ainda restam na nação empunhá-la e levá-la adiante.

A estrutura agrária que se formará nesse processo criará a base material requerida para viabilizar um rigoroso processo de zoneamento agroecológico da produção e um programa de descentralização do abastecimento alimentar da população. A prioridade que deverá ser dada a esses objetivos não é incompatível com o aproveitamento da demanda externa pelas "commodities" agrícolas porque o país possui uma enorme quantidade de terras.

Os desertores da reforma agrária, que hoje se ocupam de intrigar a opinião pública contra o MST, não conseguem separar o fato social do movimento político: o MST é um movimento político socialista que, diante do fato social representado pelo conflito fundiário, organiza a luta de uma das partes do conflito -a população rural sem terra- do mesmíssimo modo que a CNA; a bancada ruralista; os partidos da direita; a grande mídia (com matérias escandalosamente facciosas); e os intelectuais a serviço desses interesses organizam a luta da outra parte no conflito: o agronegócio.

Para que o debate sobre as duas reformas agrárias seja racional, é preciso pôr de lado a impostura da imparcialidade.

Este analista toma partido -está do lado dos sem-terra- e é deste ponto de vista que interpreta racionalmente a realidade do campo. Quem diz não estar de lado nenhum, mas do lado do Brasil, não está dizendo a verdade: o Brasil não tem lado no conflito agrário, porque é impossível realizar uma reforma que atenda ao mesmo tempo quem quer a concentração e quem quer a desconcentração da propriedade rural.

Contudo há uma crítica a ser feita à ocupação da fazenda da Cutrale. Segundo a empresa, os ocupantes destruíram 7.000 pés de laranja. Erraram: deviam ter destruído 70 mil (o que nem seria muito notado numa fazenda de 1 milhão de pés) a fim de chamar mais a atenção para o fato de que essa fazenda ocupa ilegalmente terras públicas com a conivência do Poder Judiciário.

Muito mais do que 70 mil são as vidas de crianças estão sendo destruídas pelo desemprego agrícola; pelos salários escandalosamente baixos dos trabalhadores rurais; pela precariedade das habitações rurais -fonte de doenças que destroem vidas.

O MST está certíssimo na sua tática de luta. Só lhe falta proclamar com maior vigor e clareza a cumplicidade de Lula na reforma agrária do agronegócio e cobrar mais apoio dos partidos de esquerda, das igrejas, da universidade, dos ecologistas (que precisam sair de cima do muro e assumir a luta camponesa), bem como exigir do Poder Judiciário e do Ministério Público, cujos juízes e promotores permitem o protelamento indefinido ações de desapropriação e não fiscalizam as violências policiais cometidas contra os lavradores nas reintegrações de posse, o cumprimento de suas obrigações.

O MST deve cobrar: a população rural é credora e não devedora.

PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO, 79, é presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e ex-consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação). Foi deputado federal constituinte pelo PT-SP e candidato a governador de São Paulo pelo mesmo partido em 1990. Em 2005, filiou-se ao PSOL, partido pelo qual concorreu ao governo de São Paulo em 2006.