9 de set. de 2011

Marcio Pochmann

Tributação dos ricos

Marcio Pochmann, em artigo publicado no jornal Valor, 08-09-2011.
Fonte: UNISINOS


A trajetória do desenvolvimento contempla a existência de um sistema tributário progressivo. Ou seja, a presença de impostos, taxas e contribuições que atuam em proporção maior com a elevação da renda e riqueza. Assim, a justiça tributária se manifesta logo na arrecadação do fundo público e se mantém na medida em que o gasto governamental seja proporcionalmente maior com a redução da renda e riqueza. Para se conhecer a eficiência do Estado, basta saber a forma com que tributa a sociedade e redistribui o que arrecadou para a população.

Pela tradição do subdesenvolvimento, a capacidade do Estado tributar os pobres tem sido proporcionalmente maior que a renda e a propriedade dos ricos. O inverso se estabelece na redistribuição do fundo público constituído por impostos, taxas e contribuições, uma vez que os pobres ficam geralmente com a parte menor do que contribuíram e os ricos com a parcela maior. Isso tudo porque os segmentos privilegiados demonstram inegáveis condições de pressionar o Estado a seu favor, bem mais que os demais estratos sociais, sobretudo os mais vulneráveis e desorganizados politicamente. Sobre isso, aliás, valeria aprofundar o debate acerca da eficiência do Estado.

Na virada do século XXI, o governo brasileiro demonstrou considerável interesse em elevar a qualidade do gasto social, o que permitiu melhorar o tratamento dos segmentos sociais mais vulneráveis e desorganizados politicamente. Por diversas modalidades de atuação das políticas públicas os segmentos de menor renda terminaram ampliando a absorção do fundo público. O impacto distributivo do Estado brasileiro se mostrou inegável, com queda no grau de desigualdade pessoal da renda de 9,5%, passando de 0,55, em 2003, para 0,50, em 2009 (índice de Gini, quanto mais próximo de 1 mais desigual a distribuição). Se desconsiderada a atuação do Estado sobre os rendimentos do conjunto da população, ou seja, a renda original sem incluir as políticas de transferências de renda, a redução no grau de desigualdade seria de apenas 1,7% (de 0,64, em 2003, para 0,63, em 2009).

Em síntese, constata-se uma positiva contribuição recente do Estado no tratamento da desigualdade da renda, especialmente pelo lado da redistribuição do fundo público arrecadado. Mas falta ainda, por outro lado, avançar na qualidade da arrecadação tributária, que permanece fortemente concentrada na parcela da população de baixa renda. Os ricos seguem demonstrando importante capacidade de driblar o conjunto dos tributos. Um bom exemplo disso pode ser observado na marcha da sonegação fiscal existente no Brasil. Inicialmente pela ausência de tributação nas aplicações financeiras de residentes nas operações realizadas no exterior, sobretudo nos chamados paraísos fiscais. Em 2009, por exemplo, somente os recursos aplicados em quatro dos 60 paraísos fiscais (Ilhas Cayman, Virgens Britânicas e Bahamas, mais Luxemburgo) existentes no mundo representaram mais de ¼ do total de recursos considerados investimentos diretos externos (IDE) pelo Banco Central. A intransparência e, por que não dizer, escassa regulação permite que esses recursos aplicados externamente possam retornar legalizados e com contida tributação. A ausência de uma taxação internacional faz prevalecer a sistemática de poderosos e ricos evadirem-se de suas contribuição ao fundo público.

Na sequência, podem ser identificadas diversas modalidades existentes no Brasil que facilitam a evasão fiscal. O contrabando nas fronteiras e o exercício da informalidade consagram funcionalidade à concorrência não-isonômica, ao mesmo tempo em que permitem que riqueza existente deixe de ser tributada. O resultado disso tem sido a concentração da renda e, sobretudo, da riqueza. Também nesse sentido segue inalterado o curso da tributação sobre as grandes fortunas no país, sem qualquer contribuição ao fundo público, devido à ausência de taxação específica conforme verificado nas economias desenvolvidas.

No caso ainda do favorecimento aos privilegiados e poderosos, cabe mencionar a baixa eficácia da tributação direta nas três esferas do federalismo brasileiro. Em relação ao imposto de renda da pessoa física, por exemplo, o Ipea estima que R$ 1 a cada R$ 3 deixa de ser arrecadado, ao passo que segmentos de maior renda podem financiar os seus gastos privados com educação, saúde, previdência e assistência social por meio de abatimentos na declaração anual. Só no financiamento da educação privada, o Estado brasileiro deixou de arrecadar R$ 5 bilhões daqueles que fizeram a declaração anual do Imposto de Renda em 2010.

Por fim, os tributos diretos sobre a propriedade rural (ITR) e urbana (IPTU) seguem inacreditavelmente regressivos, uma vez que sinais exteriores de riqueza concentrada manifestada por latifúndios e mansões em progressão sigam quase imunes à contribuição justa ao fundo público. Além disso, constata-se também que o imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) permanece sem incidir sobre aviões, helicópteros e lanchas.

O adequado enfrentamento da injustiça tributária atual impõe a elevação da eficiência do Estado, seja no formato da arrecadação do fundo público como na sua redistribuição. Isso implicaria abandonar o vergonhoso peso do Estado proporcionalmente maior sobre os segmentos de menor rendimento, que transferem todo o mês praticamente a metade do que recebem por força do esforço do seu trabalho. Já os ricos, que por força de suas propriedades obtêm rendas elevadas, quase nada contribuem com o fundo público no Brasil.




O comentário é de Ivo Poletto, publicado no seu blog, 08-09-2011 http://ivopoletto.blogspot.com//

Está mais do que demonstrado nele que os mais pobres contribuem com 48,9% de sua renda para o Fundo Social criado a partir da cobrança de impostos. No outro extremo, os poucos que ganham mais de 30 salários mínimos só contribuem com 26,3 de sua renda. E na hora de distribuir os recursos do Fundo acontece o contrário: a maior parte vai para os mais ricos, enquanto os pobres ficam com os restos.

É incrível o cinismo de nossas elites econômicas: quando o exemplo dos países mais ricos favorece seus privilégios, exigem que as políticas nacionais o sigam; mas quando as políticas dos países mais ricos mexeriam com seus privilégios, aí elas se tornam nacionalistas! É o caso da política tributária: nos países mais ricos ela é progressiva, enquanto no Brasil ela se mantém escandalosamente regressiva.

Quem deseja relações mais justas e melhores condições de vida para a população brasileira deve defender e lutar por uma justiça tributária, que só se firmará quando for adotada uma política tributária progressiva: quem ganha mais e detém muita riqueza, contribui mais para o Fundo Social. Sem isso, continua-se a apostar no aprofundamento da desigualdade, no sentimento de injustiça estrutural e, por isso, no provável aumento da violência.



Escândalo de escravidão com deficientes mentais comove a China

Quando em 2007 descobriu-se a existência de milhares de pessoas que foram forçadas a trabalhar como escravos em fábricas de tijolos em várias províncias do centro da China, uma onda de indignação percorreu o país e as autoridades lançaram uma campanha para erradicar o problema. Os resultados foram razoáveis. Desde então, tem surgido esporadicamento casos de escravidão laboral em diferentes lugares da China e a situação continua distante de ter sido resolvida como comprova um novo escândalo que veio a tona nessa semana. A reportagem é Jose Reinoso e publicado pelo El País, 08-09-2011. A tradução é do Cepat.
Fonte: UNISINOS



A polícia libertou domingo passado 30 pessoas com deficiência mental que trabalhavam em condições subumanas em fornos de tijolos ilegais na província central de Henan, segundo informou a imprensa chinesa.

As vítimas eram agredidas regularmente e algumas já trabalhavam há mais de sete anos sem receber. Entre os libertos, há cegos e mudos. Outros, depois de serem resgatados, foram incapazes de explicar de onde eram. A polícia, que agiu graças a denúncias, garantiu que alguns dos operários sofrem problemas mentais tão graves que não puderam dizer quem eram. “Alguns deles nem sequer puderam dizer uma frase inteira e não agem como pessoas normais”, afirmou Liu Weimeng, subdiretor de comunicação em Zhumadian de onde foram resgatados 17 dos operários, segundo o jornal em inglês China Daily. Um porta-voz em Dengfeng, local onde foram libertos outros cinco, disse que a polícia enfrentou ali os mesmos problemas.

Os trabalhadores foram sequestrados ou enganados nas ruas e estações ferroviárias e retirados de suas localidades e depois vendidas às fábricas por uma cifra que varia entre 300 e 500 euros segundo a cadeia de televisão de Zhengzhou (capital de Henan) que revelou o escândalo. A polícia prendeu oito pessoas, entre elas, algumas que recrutavam mão de obra escrava e um capataz acusado de castigar os operários, alguns de apenas 14 anos.

Bai Shasha, de 23 anos, um trabalhador com deficiência mental da cidade de Luoyang (Henan) resgatado pela polícia em julho contou à cadeia de televisão que várias pessoas com navalhas o sequestraram em março passado e depois o levaram à fábrica, onde o agrediam com chicote e tijolos. Os operários eram obrigados a trabalhar o dia todo e pela noite dormiam em locais apertados e fedorentos.

Não é a primeira vez que é descoberta mão de obra escrava em Henan, uma das províncias mais pobres da China. Em 2007, foram encontradas milhares de pessoas que trabalhavam sem cobrar em fornos de tijolos nessa província e na vizinha Shanxi. Recebiam surras e eram apenas alimentadas. Os donos das fábricas operavam em alguns casos com a conivência das autoridades locais e a polícia. O fio do novelo que levou à descoberta do caso foi a desesperada busca por um adolescente por parte do seu pai.

Apesar do compromisso das autoridades em erradicar essas práticas, as mesmas continuam surgindo devido, em parte, a forte demanda de materiais de construção criada pelo boom imobiliários que vive a China. Em dezembro de 2010, as autoridades fecharam uma fábrica na região ocidental de Xinjiang, em 11 operários – a maioria com problemas mentais – viviam escravizadas fazia anos. No mesmo mês, Zeng Lingquan, membro da Conferência Consultiva Política – orgão assessor do Parlamento Chinês -, e sua esposa, Li Shuqiong, foram presos por vender 130 pessoas com deficiência mental.

1 de ago. de 2011

Livro compara políticas agrícolas do Brasil, França e Europa

Pesquisadores brasileiros e franceses reuniram-se numa coletânea que faz uma análise comparada de políticas públicas voltadas para a agricultura e o meio rural no Brasil, na França e na Europa como um todo. O livro “Análise Comparada de Políticas Agrícolas” (Mauad Editora), organizado por Philippe Bonnal e Sergio Pereira Leite.
Fonte: Carta Maior


Com temas que abordam o desenvolvimento sustentável, a agricultura familiar, territórios e agrocombustíveis, entre outros, este livro - como realça o professor e presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Renato S. Maluf, que assina o prefácio - pretende ressaltar a importância de se levar em conta as peculiaridades da agricultura e do meio rural de cada país na formulação das políticas públicas, analisando, assim, a sua adequação e eficácia.

Segundo os organizadores da coletânea, Philippe Bonnal e Sergio Pereira Leite, não se trata somente de analisar uma política a partir de sua capacidade transformadora da realidade, mas de analisá-la como um processo, uma construção social que mobiliza atores cujos interesses são divergentes e às vezes antagônicos, ocupando distintas posições dentro de uma estrutura de poder. Participação social, espaços de coordenação, construção de pactos e consensos possíveis são algumas das questões de formulação e implementação de políticas públicas que atravessam os capítulos.

Ao todo, são 11 estudos que se valeram das reflexões produzidas no contexto de alguns projetos/grupos de pesquisa, sendo dois deles de particular importância: o Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (Oppa) do CPDA/UFRRJ, que centra sua atenção sobre os processos de formação das políticas rurais brasileiras no período recente, e o projeto Produção de Políticas sobre Desenvolvimento Sustentável (Propocid), cujos trabalhos voltam-se para uma análise comparada das políticas de desenvolvimento agrícola e rural sustentável em vários espaços nacionais, entre os quais o brasileiro.

Os 11 estudos que compõem a coletânea são os seguintes:

Comparação internacional: diferenciar as posturas do científico e do político - Bruno Théret

Cognição, políticas e ações públicas: entre coerência, fragmentação e aprendizados - Gilles Massardier

As ideias na produção de políticas públicas: contribuições da abordagem cognitiva - Catia Grisa

Redes de política pública na trajetória do setor público agrícola brasileiro - Jorge O. Romano

A construção normativa do desenvolvimento sustentável nos contextos de sua “tradução em políticas”: uma análise pelas dependências de trajetória no Brasil e no México - Eric Leonard, Philippe Bonnal, Jean Foyer e Sergio Pereira Leite

As políticas públicas francesas: entre a dependência do caminho e a competição internacional - Jean Couss

A política agrícola brasileira, sua adequação e sua funcionalidade nos vários momentos do desenvolvimento nacional - Carlos G. A. Mielitz Netto

As transformações da Política Agrícola Comum: o desenvolvimento sustentável levado em conta? - Bernard Roux

Política econômica, liberalização comercial e agricultura familiar: a experiência brasileira das décadas de 1980 e 1990 279 - Nelson Giordano Delgado

O desenvolvimento rural no Brasil: das políticas de Estado às políticas territoriais - Eduardo Ernesto Filippi

A economia política da construção institucional do mercado de biodiesel no Brasil - Georges Flexor

16 de jul. de 2011

Preço das eólicas alcança competitividade com hidrelétricas, conclui estudo global

Estudo indica que o custo da energia eólica chegou ao patamar das grandes hidrelétricas e já é mais competitiva que as plantas a biomassa. (Jornal da Energia, texto de Paulo Silva Junior, 12/07/11). Publicado em 13 de julho de 2011, por Xingu Vivo.
Fonte: Movimento Xingu Vivo Para Sempre 

Média do custo do KWh da fonte é também mais baixo que plantas movidas a biomassa

Em uma média global, o custo da energia eólica chegou ao patamar das grandes hidrelétricas e já é mais competitiva que as plantas movidas a biomassa. A conclusão é do renováveis em todo o planeta.
REN21 Renewables 2011 Global Status Report, documento que atualiza os dados sobre energias renováveis em todo o planeta.

Segundo a parte dedicada aos custos de geração, as grandes usinas hídricas, tipicamente com capacidade acima de 10MW, têm o KWh custando entre 3 e 5 centavos de dólar americano. As eólicas onshore, com turbinas entre 1,5 e 3,5MW, custam entre 5 e 9 centavos.

Já as biomassa, com plantas entre 1 e 20MW, tem o KWh geram a um custo entre 5 e 12 centavos de dólar americano, mesmo valor das pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), que na escala global são aquelas com potencial entre 1 e 10MW.

Na sequência da tabela está a energia geotérmica (4-7 centavos de dólar americano/KWh), eólica offshore (10-14), solar térmica concentrada (14-18), solar fotovoltaica de grande escala (15-30) e painéis solares fotovoltaicos (17-34).

O estudo pode ser encontrado no site da REN21, que também disponibiliza um mapa interativo das energias renováveis.

Belo Monte favorecerá Alcoa, Cargill, Bunge, ADM e Monsanto

Pela Agência Latino-Americana e Caribenha de Comunicação (ALC).
Fonte: CEBI


O Movimento Xingu Vivo para Sempre reagiu com seriedade, mas em tom irônico, ao Relatório de Inteligência da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e aos comentários do jornalista Paulo Henrique Amorim, publicados na semana passada no seu blog “Conversa Afiada”, arrolando organismos internacionais que se opõem à construção da Usina Hidrelétrica Belo Monte, no Rio Xingu, na altura de Altamira, no Pará.

Campanhas contra a construção de Belo Monte têm disseminado, no Brasil e no exterior, “posicionamento ideológico maniqueísta, norteado por suas sedes internacionais, que vislumbram o projeto de Belo Monte como símbolo internacional de um conflito recorrente entre os governos e seus interesses no desenvolvimento social e econômico de um lado e as sociedades tradicionais e indígenas e seus interesses na defesa dos direitos humanos e do meio ambiente de outro”, constata o relatório da Abin.

O relatório sigiloso da Abin é “patético” porque as verdades que ele arrola “são mais do que públicas”. Estão no sítio web do Movimento que são seus parceiros e apoiadores. “Não precisava o governo gastar dinheiro dos contribuintes com essa ‘investigação’”, diz nota do Xingu Vivo. “Constrangedoras, porém, são as mentiras pelas quais o contribuinte também paga”, agrega.

O Movimento desafia a Abin a comprovar que recebe apoio de governos. O Relatório de Inteligência 0251/82260/ABIN/GSIPR/9 MAIO 2011 arrola um por um organismos que apóiam com algum tipo de recurso o Movimento Xingu Vivo para Sempre.

Mas, contrapõe a nota do movimento, os arapongas da Abin, que se limitaram a fazer pesquisas no Google, esqueceram de listar entre os apoiadores o Painel de Especialistas, a Associação Brasileira de Antropologia, Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, departamentos da Universidade de São Paulo, da Universidade Estadual de Campinas, da Universidade de Brasília.

O jornalista Paulo Henrique Amorim frisa que Belo Monte será a terceira maior hidrelétrica do mundo, “que não vai alagar uma única moradia, um puxadinho, uma lavoura de indígena brasileiro”. O Movimento Xingu Vivo convidou Paulo Henrique a visitar Altamira para subsidiar suas opiniões.

Paulo Henrique comentou, no Conversa Afiada, que a oposição a Belo Monte favorece interesses não-brasileiros. Xingu Vivo pergunta o que tem de brasileiro a Alcoa, Cargill, Bunge, ADM, Monsanto, “beneficiários da usina e das mudanças das leis ambientais?”

27 de jun. de 2011

A bastilha da exclusão

Nos anos 90, a cada dez brasileiros, quatro eram miseráveis. Hoje a proporção é de um para dez. O ganho é indiscutível. Mas o desafio ficou maior: erradicar a miséria pressupõe atingir a bastilha da exclusão que no caso do Brasil tem uma intensidade rural (25,5%) cinco vezes superior à urbana (5,4%).

Por José Graziano da Silva. (*) Artigo publicado originalmente no jornal Valor.
Fonte: Carta Maior



Crises funcionam como uma espécie de tomografia na vida dos povos e das nações. Nos anos 80, por exemplo, o fim do ciclo de alta liquidez escancarou a fragilidade de um modelo de crescimento adotado por inúmeros países da América Latina e Caribe ancorado em endividamento externo. Nos anos 90, a adesão ao cânone dos mercados auto-reguláveis expôs a economia a sucessivos episódios de volatilidade financeira que desmentiram a existência de contrapesos intrínsecos ao vale tudo do laissez-faire. O custo social foi avassalador.

A crise mundial de 2007-2008, por sua vez, evidenciou a eficácia de uma ferramenta rebaixada nos anos 90: as políticas de combate à fome e à pobreza, que se revelaram um importante amortecedor regional para os solavancos dos mercados globalizados.

O PIB regional per capita recuou 3% em média em 2009 e o contingente de pobres e miseráveis cresceu em cerca de nove milhões de pessoas. No entanto, ao contrário do que ocorreu na década de 90, quando 31 milhões ingressaram na miséria, desta vez o patrimônio regional de avanços acumulados desde 2002 não se destroçou.

Abriu-se assim um espaço de legitimidade para a discussão de novas famílias de políticas sociais, desta vez voltadas à erradicação da pobreza extrema.

No Brasil, a intenção é aprimorar o foco das ações de transferência de renda, associadas a universalização de serviços essenciais e incentivos à emancipação produtiva. Espera-se assim alçar da exclusão 16,2 milhões de brasileiros (8,5% da população) que vivem com menos de R$ 70,00 por mês.

A morfologia da exclusão nos últimos anos indica que o êxito da empreitada brasileira- ou regional - pressupõe, entre outros requisitos, uma extrema habilidade para associar o combate à miséria ao aperfeiçoamento de políticas voltadas para o desenvolvimento da pequena produção agrícola. Vejamos.

A emancipação produtiva de parte dessa população requer habilidosa sofisticação das políticas públicas.

Apenas 15,6% da população brasileira vive no campo. É aí, em contrapartida, que se concentram 46% dos homens e mulheres enredados na pobreza extrema - 7,5 milhões de pessoas, ou 25,5% do universo rural. As cidades que abrigam 84,4% dos brasileiros reúnem 53,3% dos miseráveis - 8,6 milhões de pessoas, ou 5,4% do mundo urbano.

Portanto, de cada quatro moradores do campo um vive em condições de pobreza extrema e esse dado ainda envolve certa subestimação. As pequenas cidades que hoje abrigam algo como 11% da população brasileira constituem na verdade uma extensão inseparável do campo em torno do qual gravitam. Um exemplo dessa aderência são os 1.113 municípios do semi-árido nordestino, listados como alvo prioritário da erradicação da miséria brasileira até 2014.

Nos anos 90, a cada dez brasileiros, quatro eram miseráveis. Hoje a proporção é de um para dez. O ganho é indiscutível. Mas o desafio ficou maior: erradicar a miséria pressupõe atingir a bastilha da exclusão que no caso do Brasil tem uma intensidade rural (25,5%) cinco vezes superior à urbana (5,4%).

O cenário da América Latina e Caribe inclui relevo semelhante com escarpas mais íngremes. Cerca de 71 milhões de latinoamericanos e caribenhos são miseráveis que representam 12,9% da população regional, distribuídos de forma igual entre o urbano e o rural: cerca de 35 milhões em cada setor. A exemplo do que ocorre no Brasil, porém, a indigência relativa na área rural, de 29,5%, é mais que três vezes superior a sua intensidade urbana (8,3%), conforme os dados da Cepal de 2008.

Estamos falando, portanto, de um núcleo duro que resistiu à ofensiva das políticas públicas acionada na última década. Desde 2002, 41 milhões de pessoas deixaram a pobreza e 26 milhões escaparam do torniquete da miséria na América Latina e Caribe. Essa conquista percorreu trajetórias desiguais: declínios maiores de pobreza e miséria correram na área urbana (menos 28% e menos 39%, respectivamente) em contraposição aos do campo (menos 16% e menos 22%).

Uma visão de grossas pinceladas poderia enxergar nesse movimento uma travessia da exclusão regional em que a pobreza instaura seu predomínio na margem urbana, enquanto a maior incidência da miséria se consolida no estuário rural e na órbita dos pequenos municípios ao seu redor.

A superação da miséria absoluta é possível com a extensão dos programas de transferência de renda aos contingentes mais vulneráveis. Mas a emancipação produtiva de parte desses protagonistas requer habilidosa sofisticação das políticas públicas. A boa notícia é que o núcleo duro rural inclui características encorajadoras: os excluídos tem um perfil produtivo, um ponto de partida a ser ativado. Os governos, por sua vez, tem experiências bem sucedidas a seguir. Entre elas, a brasileira, a exemplo do crédito do Pronaf, e das demandas cativas que incluem o suprimento de 30% da merenda escolar e as Compras de Alimentos da Agricultura Familiar, implantadas nos últimos anos. Não por acaso, a pobreza extrema no campo brasileiro caiu de 25% para 14% entre 2002 e 2010 e a renda do agricultor familiar cresceu 33%, três vezes mais que a média urbana nesse mesmo período.

Eleição de Graziano é vitória da política externa do Brasil

Por Marco Aurélio Weissheimer.
Fonte: Carta Maior


A eleição de José Graziano da Silva para a direção-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) é uma vitória da política externa brasileira, do governo da presidenta Dilma Rousseff e da agricultura brasileira, disse à Carta Maior o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, Alto Representante-Geral do Mercosul. “A eleição de Graziano significa o reconhecimento da importância do Brasil na área da agricultura, tanto na agricultura voltada para a exportação, quanto na agricultura familiar, onde o país teve um grande desenvolvimento agrário e social nos últimos anos, com programas altamente eficientes”.

Samuel Pinheiro Guimarães enfatizou o significado da escolha para a política externa brasileira. “A eleição do doutor Graziano significa o reconhecimento do êxito da política externa da presidenta Dilma. Disputamos essa eleição com um candidato muito forte (o espanhol Miguel Anges Moratinos). Foi uma disputa política muito dura onde só um vence. É preciso que se reconheça isso internamente. Foi uma vitória do governo e do Brasil”.

José Graziano da Silva assumirá a FAO num momento em que a segurança alimentar mundial voltou a ser tema de preocupação em virtude do preço dos alimentos. Samuel Pinheiro Guimarães lembrou que há uma demanda crescente por alimentos no mundo, o que abre uma grande oportunidade para o Brasil. “Temos a oportunidade de aproveitar essa situação para gerar receita para o país. Internamente, devemos aproveitar para agregar valor aos nossos principais produtos, como açúcar, soja e outros”.

O Alto Representante-Geral do Mercosul também destacou a importância da eleição de Graziano para as políticas de integração na área da agricultura que vem sendo implementadas no bloco sulamericano. “Isso naturalmente vai facilitar o aprofundamento dessas políticas que avançaram bastante nos últimos anos. Já uma cooperação muito estreita nesta área no âmbito do Mercosul, com um intercâmbio muito importante de experiências como o Programa de Aquisição de Alimentos e as políticas de micro-crédito”.

Vitória de Graziano amplia ação global do Brasil

Fonte: Carta Maior (Redação)
Numa eleição acirrada, em que votaram 180 países, o ex-ministro do governo Lula, José Graziano da Silva, superou por 4 votos o adversário espanhol, Miguel Angel Moratinos, na disputa pela sucessão de Jacques Diouf no comando da FAO, encerrada neste domingo , em Roma. O Brasil conquista assim seu primeiro posto de relevo entre as organizações internacionais, com um candidatura indissociável da luta contra a pobreza e a desigualdade.

Não por acaso, antes da votação, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, elogiou o espanhol Miguel Angel Moratinos, candidato que carregava o fardo do protecionismo agrícola das nações ricas contra os pobres. A vitória brasileira reposiciona o papel da FAO no cenário internacional. O que se espera agora é um organismo renovado que passe a ecoar, de fato, os interesses Sul-Sul, na luta por um desenvolvimento feito de segurança alimentar e maior justiça social. Criador do Fome Zero, Graziano é um crítico da especulação financeira decorrente da desregulação do sistema bancário promovida pelo neoliberalismo. Ao contrário de seu adversário espanhol, em diversos pronunciamentos e artigos ele destacou a influência nefasta dos capitais especulativos na formação dos preços dos alimentos, gerando flutuações abruptas que asfixiam produtores e agravam a fome nos países pobres. A vitória do ex-ministro e amigo pessoal de Lula não pode ser entendida sem o pano de fundo da crise mundial que evidenciou o crepúsculo de uma agenda ortodoxa até então hegemônica. Por mais de 30 anos, ela subordinou o destino das nações e a segurança alimentar da sociedade às supostas virtudes dos 'livres mercados', cujo saldo mórbido é o desconcertante paradoxo de um planeta que reúne um bilhão de famintos em pleno apogeu da tecnologia agrícola. A sucessão na FAO influenciará também a ação internacional de Lula que trabalhou intensamente nos bastidores da campanha, em contatos com chefes de Estado, sobretudo da África e América Latina.

O líder brasileiro passa a desfrutar agora de uma âncora institucional para seus projetos de cooperação entre América Latina e África, com base nas políticas sociais bem sucedidas de sua gestão. Para o governo Dilma, que se empenhou decididamente na eleição de Graziano, numa ação firme e centralizada no Itamaraty, a vitória é um trunfo que reafirma a liderança e a credibilidade do Brasil junto aos países pobres.

O conjunto desagrada os que torciam por uma derrota para transformá-la no atestado de óbito de uma experiência de governo que, com todos os percalços, assumiu contornos de uma nova referência de desenvolvimento, cujos resultados impuseram um revés superlativo ao neoliberalismo tropical.

1 de jun. de 2011

Lesionada pelo ritmo de trabalho, funcionária “modelo” é abandonada pela Seara/Marfrig

A reportagem é de Leonardo Severo, de Sidrolândia-MS e publicada pelo portal da CUT, 30-05-2011.
Fonte: UNISINOS


Calma, Vilma Fátima Favero, “encostada” aos 42 anos, trabalhava na Seara de Sidrolândia, no interior do Mato Grosso do Sul, como “ajudante agropecuária”. “A gente separa os pintos, põe na caixa, vacina, forma o lote e põe no caminhão”. Cada trabalhador coloca milhares de pintos por hora nas caixas. Cada caixa tem cem aves. “Tinha gente que não agüentava e desmaiava, pois muitas vezes se varava a noite. Começava às duas da tarde e largava por volta da meia noite. Muitas vezes passava do horário, pois eram 130 mil pintos e apenas quatro pessoas para sexar. Se alguém faltava era pior, o trabalho acumulava para ser dividido entre quem se encontrava. O ritmo aumentava ainda mais, insuportável”.

Cultuada como “modelo”

Ela nos mostra as fotos de quando era cultuada como “modelo” e “incentivo” a ser seguido pelos demais trabalhadores do frigorífico da Seara (então pertencente à Cargill, hoje à Marfrig). A gerência e seus capatazes aplaudiam tamanha rapidez e eficiência na sexagem. Além do bicampeonato brasileiro, Vilma Favero também foi vice-campeã, concorrendo com outros 52 incubatórios da Sadia, Perdigão, Avipal e da própria Seara.

Mostra mais fotos: ela própria separando os pintos, no jantar promovido pela empresa Merial, que fornecia as vacinas e os prêmios. O microondas conquistado, os demais colegas da equipe sorrindo. “Foi feita uma reportagem e até saiu na rádio. Deram uma festona. Éramos exemplo”. Não demorou muito tempo e a dor chegou, inclemente. Logo vieram os remédios, os laudos, a incapacidade crônica, permanente. E a negativa da empresa, que não reconhecia que ela trabalhava naquela seção e, consequentemente, a suspensão do convênio médico com a Unimed. As fotografias viraram provas materiais contra a empresa. Pergunto do valor da pilha de remédios. “Às vezes têm no posto da Prefeitura. Quando preciso comprar, passa de R$ 200 e tem remédio que eles não dão. Meu dinheiro desaparece”.

Hoje a dor é insuportável nos dois ombros, comprometendo o braço inteiro. A tendinite e as cinco hérnias de disco completam o quadro dantesco. “Não trabalhei um dia para a Seara. Não foi um dia, foram 14 anos, um mês e dez dias. Agora estou afastada há quatro anos. Nem o dono larga os cachorros como eles me largaram”, desabafa, com os olhos fixos. Numa das mãos mostra novamente a foto, jovem, premiada; na outra a radiografia da coluna em frangalhos. “Cortaram o meu plano médico e dizem que estou devendo oito mil reais para a Unimed”, informou.

Ligações perigosas

No início do problema o médico do INSS, a quem Dona Vilma e um sem número de trabalhadores acusavam de ter vínculo funcional com a Seara – chegou a recusar o afastamento e deu alta. Mesmo com os exames na mão que apontavam tendinite nos dois braços e a coluna com cinco hérnias de disco. “Espécie 31”, diz. A Previdência tem dois códigos de doença profissional: o 91, que garante estabilidade, obrigando a empresa a recolher o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), ao ser reconhecida como doença ocupacional do trabalho; e o 31, que pode ser qualquer doença, como uma pedra na vesícula, não vinculando a enfermidade com a atividade profissional desenvolvida.

A quase totalidade dos casos da Seara em Sidrolândia são 31. “Para a Seara, os trabalhadores são peças de reposição. Não se importam com a qualidade de vida das pessoas, estão sempre sugando, sugando. Assim, antes de emitirem o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), que poderia garantir a estabilidade, eles já demitem”, denuncia a advogada Valdira Ricardo Galo Zeni. Acompanhando há dez anos as práticas da empresa na cidade, Valdira alerta que o grande problema das doenças ocupacionais é que não são visíveis: “eles estragam, dispensam e põem outro no lugar. As mulheres, por exemplo, acabam perdendo o movimento dos membros superiores e sequer conseguem pegar o filho no colo ou mesmo fazer um simples trabalho doméstico”.

Dona Vilma lembra que no seu caso houve um claro desvio de função, pois embora trabalhasse na “sexagem” era contratada como “leitorista”. Assim, a empresa se desobriga com o funcionário, uma vez que alega não ter sido responsável pela enxurrada de enfermidades que provocou em ambiente de trabalho tão hostil. Para completar, a senhora, de 42 anos, já necessitou fazer duas operações na perna. “É que está ficando mais curta pelo problema da coluna”, diz.

Tomografia estampa o caos

Datada de 20 de abril de 2009, sua tomografia computadorizada espiral aponta, entre outras mazelas, “espondiloartrose lombar” - processo degenerativo que atinge as articulações e que causa dores intensas; “saliência discal posterior central L3-L4, L4-L5 e L5-S1, causando compressão do saco dural” – membrana que envolve a medula como se fosse uma luva - ao que se soma ainda uma “discreta escoliose” - condição que envolve curvatura lateral e rotacional complexa e deformidade na espinha.

Foi um processo longo e penoso de abandono e da mais completa falta de assistência. Em 2002 a trabalhadora lembra que amorteceu o dedo. “Não tinha força e a médica da empresa me deu 15 dias. A médica do posto de saúde tinha pedido seis meses devido às complicações, mas a empresa disse que não podia ficar sem mim na formação do lote. Resultado: a dor começou a apertar, principalmente no ombro. Eu já não tinha mais forças para empurrar as caixas para a esteira. Tudo foi amortecendo. Ao mesmo tempo, foi crescendo o medo de ganhar as contas, uma pressão medonha. Faltava gente e depois de sexar, ainda fazia a formação do lote”.

O contato dos funcionários da seção em que Vilma trabalhava com o formol, produto químico utilizado para a desinfecção também foi escondido pela Seara, pois acarretaria em adicional de insalubridade. “Amoitaram tudo e sempre que baixava a fiscalização davam um jeito de não ter ninguém trabalhando. Mentiram para a perita, para mim e para o advogado. A Seara sempre inventava alguma coisa no dia da inspeção. Para cada um de nós dizia uma coisa, para não ser fiscalizada naquele dia. Dá para ver o quanto estão mentindo”.

Seu esposo, que também foi funcionário da Seara, faleceu há dois anos e meio sem que a empresa sequer avisasse os colegas. “Ele trabalhava com carregamento de ovos, um peso enorme, e abriu o intestino. Deu uma hemorragia interna. Antes de morrer, ele havia pedido as contas da Seara, pois quando carregava peso sangrava. A roupa era branca e ficava com muita vergonha. Saiu e não conseguiu nada. Nunca mais ficou bom. Morreu sem assistência”.

Sindicato mobiliza

De acordo com Sérgio Bolzan, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Alimentação de Sidrolândia, a vergonhosa prática daqueles “campeonatos”, remonta um tempo em que ainda não havia a entidade sindical na cidade. “Hoje estamos vigilantes, apurando uma a uma as denúncias que, infelizmente, se multiplicam diante da intensidade do ritmo de trabalho, das longas e extenuantes jornadas, da falta de fiscalização mais ágil e rigorosa por parte do Ministério do Trabalho. Vale lembrar que a Marfrig comprou a Seara da Cargill com recursos públicos, do BNDES, e que deveria ter se comprometido com contrapartidas sociais, como a de investir em saúde e segurança no trabalho. Infelizmente, temos hoje um batalhão de trabalhadores mutilados, que estão afastados, bancados pela Previdência, enquanto a empresa se desobriga, não assumindo suas responsabilidades”, denuncia Bolzan, que também é dirigente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias da Alimentação (Contac/CUT).

Conforme Bolzan, a Seara já perdeu a ação no Tribunal Superior do Trabalho em relação à necessidade de estabelecer pausas de 20 minutos a cada uma hora e quarenta de trabalho. A medida visa garantir a recuperação muscular dos funcionários, pondo fim à verdadeira epidemia de doenças que tem provocado. “Após perder no TST, a empresa preferiu recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) do que aplicar o artigo 253 da Consolidação das Leis do Trabalho”, denuncia o presidente do Sindicato.

Norma regulamentadora

Na avaliação do presidente da Contac/CUT, Siderlei de Oliveira, a aprovação da Norma Regulamentadora (NR) dos Frigoríficos, que vem sendo debatida pela Comissão Técnica Paritária Permanente (CTPP) garantirá melhores condições de saúde e trabalho no Ramo da alimentação, contemplando três aspectos fundamentais: a redução do ritmo de trabalho, a redução do tempo de exposição dos trabalhadores e a mudança ergonômica dos ambientes de trabalho.

O processo movido por Dona Vilma contra a Seara corre na Justiça e se encontra na capital do Estado, Campo Grande. Antes de sair da sua casa, num bairro popular de Sidrolândia, lhe faço um último questionamento. Pergunto o que ela mais deseja. “Justiça”, ela responde, “para que nunca alguém passe pelo que estou passando”.

Segundo Dona Vilma, o reconhecimento da injustiça, com o pagamento da indenização e a tão merecida aposentadoria, será o seu prêmio de consolação. Para o Sindicato e a Contac/CUT, representará mais um passo na caminhada contra as mazelas das indústrias avícolas e rumo à aprovação da NR dos Frigoríficos.

12 de fev. de 2011

Crianças em disputa: o ataque do capital (1)

Por Roberta Traspadini, economista, educadora popular e integrante da Consulta Popular/ ES.
Fonte: Radioagência NP



Nos últimos 10 anos cresceu a preocupação dos técnicos dos governos, dos políticos e do capital sobre a necessidade de se projetar cenários para o futuro. Esta projeção nos mostra como, a classe dominante materializa e projeta para dentro da classe trabalhadora sua ideia de manutenção da ordem. Mas por que as crianças da classe trabalhadora?

Destacaremos 4 pontos introdutórios para o debate.

1. O futuro exército produtivo

América Latina possui aproximadamente 600 milhões de habitantes. Destes, pouco mais de 27% têm até 14 anos de idade. Se analisarmos as projeções para os próximos 25 anos, este grupo terá entre 25 a 39 anos de idade.

Em 25 anos estas crianças já terão passado por um processo de formação ideológica, cultural e política que moldará em muitos sentidos sua forma de ver e atuar sobre o mundo. Supõe-se que, quanto mais cedo estas crianças forem educadas no projeto da classe dominante menor resistência estas terão, para assumir sua posição periférica na tomada de decisão em seus territórios.

É com base nesta relação formal de educar/adestrar para a venda da força de trabalho, que o capital determina o que é importante que as crianças internalizem: as imagens, as brincadeiras, os princípios e valores do consumismo-individualismo e, a concepção de que se destaque o “melhor” em cada ambiente de convívio social.

Assim se reitera a ideia sobre a melhor escola, o melhor bairro para se viver, a melhor empresa para trabalhar, o melhor sujeito em contraposição aos piores.

2. A formação da consciência

Na formação da consciência burguesa desta futura juventude, não pode haver espaço para questionamentos sobre a ordem.

O capital só materializa sua formação da consciência, caso domine. O modo de produção dominante consolidou as bases materiais concretas para desenvolver aparatos técnicos científicos que o permita tirar vantagens de sua posição de classe hegemônica.

Também existe a intenção de aniquilar com o sentido do público enquanto se reitera a força do privado, logo, além da conquista do capital sobre o trabalho, deve-se de uns poucos sujeitos sobre muitos.

E, se ainda é possível visualizarmos a importância dos direitos sociais da nossa constituição na atualidade, a intenção do capital é de trabalhar agora para que no futuro estas bandeiras caiam por terra, na pedagogia do exemplo.

3. Um exemplo concreto do projeção do capital.

No estado do Espírito Santo existe um projeto do capital que atua neste território denominado ES: 2025. Dita projeção com linhas de ação concretas para os 25 anos elegeu o governador anterior Paulo Hartung como o mais bem votado do País.

A Vale é uma das empresas que atua no Espírito Santo em ação, ONG criada para projetar-executar as linhas de reconstrução do território capixaba.

A empresa faz uma parceria com algumas escolas públicas e leva as crianças dos centros municipais de educação infantil para conhecerem suas instalações. Disponibiliza o ônibus, os instrutores, explica pedagogicamente o processo a ser apreendido, distribui jogos “educativos” de presente, dá lanche e retorna as crianças para a escola e suas famílias com a certeza de que reproduziu, a partir daquele momento, o diferente e belo na vida daqueles futuros trabalhadores.

Esta ação concreta mexe diretamente com a formação da consciência tanto das crianças, quanto de parte dos educadores, incluindo seus familiares. Por quê? Para que as crianças sejam as que:

a) Verão naquela empresa a possibilidade de se empregarem no futuro; b) Desejarão desde já fazer o melhor para serem selecionadas, ou seja, fazerem por onde estar ali; c) Visualizarão um conceito de sustentabilidade dado pela empresa que disfarça o real vivido. No jogo de montar não se vê minério e sim meio ambiente ecologicamente bem sustentado; d) Poderão comparar o que têm e projetar para o que querem para o futuro, a partir do que ali viveram. Isto as remeterá inclusive para uma reflexão individual sobre a situação dos pais, dos amigos, do bairro, com o fim de ou negarem o que têm, ou reforçarem o que querem para saírem do espaço dos que nada têm.

A Vale projeta, junto com seus pares, um futuro de submissão para estas crianças da classe, cuja aparente certeza de inclusão, se constrói sob as bases dos princípios e valores ditados pelo grande capital.

4. O que está em jogo afinal?

Está em jogo a manutenção da acumulação de capital centrada na exploração do trabalho, fruto de uma perversa dominação de classe.

Está em jogo o atual consumo da criança associado à inserção futura como trabalhador endividado consciente. Enquanto hoje são os pais os que arcam de forma endividada com o consumo das crianças, amanhã estes trabalhadores já terão internalizado que toda inclusão passa pelo tipo de consumo que são capazes de desejar e realizar.

Está em jogo a formação da consciência de que não existe outro projeto senão o da classe dominante. Talvez esta seja a mensagem mais clara de todas: a de que só resta para o trabalho, trabalhar para consumir e que a acumulação fica como propriedade privada, indiscutível, de quem emprega.

Está em jogo eliminar a disputa, as contradições, e colocar no lugar da divergência um processo de dominação de classe como um projeto único de sociedade.

Isto não é novo na dinâmica de manutenção da hegemonia capitalista. Quiçá as bases técnico-científicas com as quais o capital ora conta, coloquem outros elementos que dificultam ainda mais a clareza dos projetos e processos em disputa.

4 de fev. de 2011

Caso Cutrale: trabalhadores livres e processo trancado

Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Fonte: Carta Maior

Por meio de habeas corpus[1] impetrado pelos advogados da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e do Setor de Direitos Humanos do MST, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por unanimidade, determinou o trancamento do processo crime instaurado na Comarca de Lençóis Paulista/SP contra todos os trabalhadores rurais sem terra acusados da prática de crimes durante a ocupação da Fazenda Santo Henrique – Sucocitrico-Cutrale – entre 28/9 e 7/10/2009.

Os trabalhadores tiveram prisão temporária decretada, que foi posteriormente convertida em prisão preventiva. Os decretos de prisões foram revogados em fevereiro de 2010, por meio de decisão liminar, concedida pelo Desembargador Relator Luiz Pantaleão, mas, a decisão final no habeas corpus, aguardava, desde então, voto vista do Desembargador Luiz Antonio Cardoso.

Para firmarem as revogações das prisões preventivas, os Desembargadores além de entenderem que a Magistrada de primeiro grau deixou de indicar os indícios de autoria em relação a cada um dos acusados, declararam inexistir ocorrências dando conta de que os trabalhadores tenham subvertido a ordem pública.

Por outro lado, determinou-se o trancamento do processo crime sob entendimento de que o Promotor de Justiça, em sua denúncia, não descreveu “referentemente a cada um dos co-réus, os fatos com todas as suas circunstâncias” como lhe é exigido pelo artigo 41 do Código de Processo Penal, de forma que:
“Imputa-se a todos a prática das condutas nucleares dos tipos mencionados. Em outras palavras, plasmaram-se imputações em blocos, o que implicaria correlativamente absolvição ou condenação também coletiva. Isso é impossível. Imprescindível que se defina qual a conduta imputada a cada um dos acusados. Só assim, no âmbito do devido processo legal, cada réu poderá exercer, à luz do contraditório, o direito de ampla defesa. (...)
Imputações coletivas, sem especificação individualizada dos modos de concorrência para cada episódio, e flagrante contradição geram inépcia que deve ser reconhecida. O prosseguimento nos termos em que proposta a ação acabaria, desde que a apuração prévia deve ser feita no inquérito, não, na fase instrutória, por levar aos Órgãos jurisdicionais do primeiro e segundo grau, um verdadeiro enigma a ser desvendado com o desprestígio do contraditório e da ampla defesa, garantias constitucionais inafastáveis.”
A decisão do Tribunal de Justiça representa importante precedente jurisprudencial contra reiteradas ilegalidades perpetradas contra a luta dos trabalhadores rurais sem terra, contra o ordenamento processual penal, e, sobretudo, contra as garantias constitucionais vigentes. Esperamos que esta decisão se torne cotidiana, para fazer prevalecer o senso de justiça em oposição aos interesses do agronegócio, do latifúndio e dos empresários contrários ao desenvolvimento da reforma agrária que, naquela oportunidade, louvaram os ilegais decretos de prisão contra os trabalhadores.

6 de jan. de 2011

Incra priorizou regularização fundiária

Reforma Agrária não conseguiu avançar durante os oito anos de PT porque o governo optou por não enfrentar o agronegócio, afirma Bernardo Mançano Fernandes, professor da UNESP, Coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária, em entrevista concedida a Vanessa Ramos e publicada pela página do MST, 04-01-2011.
Fonte: UNISINOS


Quais as características da política fundiária do governo Lula?

Nestes oito anos, ficou evidente que a política agrária do governo Lula foi a regularização fundiária, a desapropriação e políticas de compra e venda de terras. Também atuou intensamente no aproveitamento das áreas de assentamentos, assentando famílias em todos os lotes vagos. Essas características formaram novos componentes para o conceito de Reforma Agrária.

Qual foi o papel do Incra durante o governo Lula? Você acha que os instrumentos legais do instituto são eficientes?

O Incra cumpriu com a política fundiária do governo e não conseguiu avançar nas desapropriações porque o Poder Judiciário é hoje a principal barreira a este componente da Reforma Agrária. A eficiência dos instrumentos é relativa porque depende de outros fatores, mas sem dúvidas que um deles necessita ser mudado que é o índice de produtividade, sem a mudança deste critério, a Reforma Agrária não avança.

Quais instrumentos legais poderiam ser criados para ajudar na desapropriação de terras?

Além da atualização do índice de produtividade, a questão ambiental, o trabalho escravo e o desemprego são três temas de referências para o avanço da Reforma Agrária. A exploração monocultora em grande escala tem causado diversos problemas ambientais. A recuperação dessas áreas é possível com a produção agroecológica em pequena escala com trabalho familiar. O trabalho escravo é uma excrescência e precisa ser expurgado com a expropriação da terra para ser destinada a Reforma Agrária.

Durante o primeiro governo Lula, havia um elevado número de famílias acampadas. Por que no segundo governo, o número de famílias acampadas diminuiu? Você acha que houve uma política de desmobilização por parte do governo?

A desmobilização aconteceu por causa da política do Programa Bolsa Família, pois algumas famílias passaram a ter mais opções de sobrevivência e decidiram não lutar pela terra. Por outro lado, os movimentos camponeses não souberam trabalhar com esta nova realidade. Este decréscimo é uma situação conjuntural, o número de famílias na luta pela terra pode aumentar. Para isso, as condições de vida nos assentamentos precisam ser melhor que a vida que estas famílias que vivem de ajuda do governo levam nas periferias das cidades. A mobilização ocorre quando as pessoas têm perspectiva de vida melhor.

Por que a maior parte dos assentamentos foi feito na Amazônia, já que a maioria dos acampados estão no Sul e Nordeste do Brasil?

Porque o governo optou prioritariamente pela política de regularização fundiária. Assentar no Centro – Sul significa enfrentar mais diretamente o agronegócio. O governo não tem interesse e os movimentos não tem força política para esse enfrentamento. Esta pergunta recoloca a questão da Reforma Agrária. Para o governo Dilma, necessitamos do III PNRA que tem que contemplar os diferentes componentes das experiências de Reforma Agrária dos últimos 25 anos. Este desafio está colocado para o governo e aos movimentos. Mas até o momento ninguém tocou no assunto.

2010, ano que encerra a chamada Era Lula, foi o pior ano para a Reforma Agrária nos últimos 08 anos, diz CPT

A Comissão Pastoral da Terra – Nordeste II fez uma análise da conjuntura política e avaliação dos avanços, desafios e impasses da Reforma Agrária em 2010, ano em que se encerra a chamada “Era Lula”. Síntese da análise foi publicado no sítio da Comissão Pastoral da Terra – CPT, 04-01-2010.
Fonte: UNISINOS


Ao fim de mais um ano, que representa o encerramento de dois mandatos do Presidente Lula, os desafios e impasses históricos da Reforma Agrária no Brasil não foram superados. Em 2010, vimos a redução de 44% do número de famílias assentadas, com relação ao ano passado, além da redução de 72% no número de hectares destinados à Reforma Agrária. O Incra tornou-se ainda mais ineficaz com o seu orçamento reduzido em quase a metade em relação a 2009.

Os números deste último ano da Era Lula explicitam: a Reforma Agrária não foi uma prioridade para o Governo Federal. A Reforma Agrária que deveria ser assimilada enquanto um Projeto de nação e de desenvolvimento sustentável, transformou-se em um precário programa de assentamentos, em nível bastante aquém das reais demandas dos homens e mulheres do campo.

Balanço da Reforma Agrária 2010

2010, que encerra a chamada Era Lula, foi o pior ano para a Reforma Agrária brasileira nos últimos 08 anos. A realidade é que a promessa do Presidente Lula de fazer a Reforma Agrária com uma canetada não foi cumprida.

A situação dos camponeses e trabalhadores rurais é bastante grave! O campo exige mudanças a favor da cidadania, do desenvolvimento sustentável, contra a concentração de terra e contra o fortalecimento do já poderoso agronegócio brasileiro!

Em 2010, houve uma redução das famílias assentadas em 44% com relação ao ano passado, o qual já foi bastante insuficiente diante das promessas e dos deveres de um governo de fazer a Reforma Agrária e, sobretudo, diante das necessidades das famílias camponesas.

Também ocorreu neste ano uma drástica redução de 72% no número de hectares destinados à Reforma Agrária, conforme os números divulgados pelo próprio Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Não é exagero afirmar que em 2010 houve uma intensa estagnação no processo de Reforma Agrária em todo o País.

De fato, o orçamento do Incra foi reduzido em quase a metade em relação ao ano passado. Esse profundo corte dos recursos confirma que a Reforma Agrária não foi uma prioridade para o Governo Federal. O quadro se agravou ainda mais porque, além do corte, o orçamento destinado para a Reforma Agrária neste ano se encerrou no mês de junho e o Governo nada fez para evitar que o Congresso Nacional vetasse a suplementação orçamentária. O dinheiro que já era pouco, faltou por quase um semestre.

A Reforma Agrária, como um conjunto de medidas estratégicas para enfrentar a concentração da propriedade da terra e para promover um desenvolvimento sustentável e igualitário no campo, transformou-se em um precário programa de assentamentos, em nível bastante aquém das próprias promessas do II Plano Nacional de Reforma Agrária.

É lamentável que o Governo Lula, nestes oito anos, tenha relegado esta pauta à periferia das políticas públicas e tenha consumado uma surpreendente opção preferencial pelo agronegócio e pelo latifúndio.

A histórica disputa no Brasil entre dois projetos para o campo brasileiro está sendo desequilibrada em favor dos poderosos de sempre. De um lado, se favorece com recursos públicos abundantes o agronegócio agroexportador e destruidor do planeta. De outro lado, praticamente se relega a um plano inferior a agricultura familiar e camponesa que é responsável pela produção dos alimentos, do abastecimento do mercado interno e pelo emprego de mais de 85% da mão-de-obra do campo, segundo o último Censo agropecuário de 2006.

Com a expansão do setor sulcroalcooleiro e maior investimento governamental para a produção de etanol, os números de trabalhadores encontrados em situação de escravidão subiram significativamente. Na era FHC, cerca de cinco mil trabalhadores e trabalhadoras foram libertados do trabalho escravo no campo. Na Era Lula esse número sobe drasticamente para 32 mil. Atribuímos este aumento a uma maior atuação do Grupo Móvel de combate ao Trabalho Escravo, pressionados por uma maior mobilização social em torno do tema, criações de Campanhas, denúncias nacionais e internacionais (OIT), visibilidade na imprensa, a criação da lista suja, além de outros mecanismos jurídicos como a alteração da definição penal do crime de Trabalho Escravo (TE), no art. 149.

No caso dos territórios quilombolas a situação é a mesma. Com efeito, não houve vontade política em demarcar os territórios quilombolas, além de o Incra não dispor de pessoal capacitado e de estrutura para promover o procedimento de titulação e de elaboração de relatórios técnicos, mantendo-se inerte diante dessa dívida histórica com o povo dos quilombos, remanescente ainda sofrido da odiosa escravidão.

Como resultado disso, são insignificantes os dados divulgados pelo Instituto, que revelam que o Governo Lula chega ao seu último ano emitindo apenas 11 títulos às comunidades quilombolas. Número bastante irrisório diante da demanda de mais de 3.000 comunidades em 24 estados brasileiros.

Também nessa questão, o agronegócio tem exercido pressões contrárias à titulação das terras e, infelizmente, o Governo tem sido mais sensível a essas pressões e interesses do que ao seu dever maior de fazer justiça às comunidades quilombolas. Setores políticos ligados ao agronegócio articularam uma instrução normativa que não mais respeita o direito de autoidentificação, conforme preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Decreto 4887/03.

A postura do Governo Federal foi ainda mais lamentável quando a Casa Civil passou a reter todos os processos de regularização territorial dessas comunidades, embora o Supremo Tribunal Federal tenha negado o pedido liminar do DEM na ADIN que pretende julgar inconstitucional o decreto que regulamenta a matéria.

Na Reforma Agrária, como nos remanescentes dos quilombos, lamentavelmente, o governo Lula manteve o passivo de conflitos de terra recebido do Governo anterior. A atual política econômica é uma aliada das empresas transnacionais, mineradoras e do agronegócio e, assim, penaliza cada vez mais a agricultura familiar e camponesa.

Embora as ocupações de terra tenham diminuído em alguns Estados nos últimos anos, em especial em 2010, o número de famílias envolvidas na luta pela terra na Era Lula, não é tão distante do da Era FHC (570 mil famílias, 3.880 ocupações). Os dados do governo Lula, relativos aos dois mandatos, ainda não foram fechados, mas estimativas indicam a participação de cerca de 480 mil famílias em 3.621 ocupações de Terra ao longo desse período (dados do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Projetos de Reforma Agrária - NERA).

No Sertão Nordestino também são visíveis os efeitos perversos desse abandono de prioridade das políticas públicas. Tem se intensificado o crescimento do agronegócio e da mineração, com o decisivo apoio dos Governos Federal e Estaduais, através de ações e de recursos públicos. É o que vem ocorrendo na região do Vale do Açu e na Chapada do Apodi, no Rio Grande do Norte, no alto sertão paraibano e no sertão pernambucano.

Todos são projetos de mineração, de fruticultura irrigada, com uso intensivo de agrotóxicos, com a degradação do meio ambiente e, sobretudo, com a irrigação custeada por recursos públicos para atender prioritariamente às grandes empresas e não aos pequenos produtores.

Em todos esses grandes Projetos, os resultados imediatos na geração de empregos e de investimentos mascaram um futuro nada sustentável, com a geração de danos à saúde das pessoas e ao meio ambiente, bem como com a intensificação da concentração de renda e de terras, com graves impactos nas populações tradicionais.

Com esses moldes e parâmetros, o projeto de transposição das águas do Rio São Francisco, que o governo tanto divulga e festeja, é mais um Projeto que só vai beneficiar o agro-hidronegócio e que trará impactos negativos para as comunidades tradicionais, como os indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Na região de Curumataú e Seridó paraibano, a exploração das atividades de mineração só fez aumentar a grilagem de terras e a expulsão das famílias que há décadas moram e plantam na área.

Na Zona da Mata pernambucana, o Governo Federal não questionou o domínio territorial do decadente agronegócio canavieiro. Nem a tragédia ambiental, com a inundação de dezenas de cidades em Alagoas e Pernambuco, em decorrência da devastação provocada pela cana de açúcar, sensibilizou os Governos Federal e Estadual.

Embora o IBAMA tenha ajuizado ações civis públicas para obrigar as Usinas de Açúcar e Álcool de Pernambuco a repor os seus passivos ambientais, a forte pressão do setor e o apoio do Ministério Público Federal, fez com que houvesse uma trégua da Justiça para com essas Empresas seculares, enquanto a população mais pobre perdia tudo que tinha na devastadora enchente de 2010.

Diante desses fatos, a reconstrução das cidades está se dando em áreas desapropriadas das Usinas, sem que qualquer medida preventiva ou estrutural de recomposição da Mata Atlântica destruída tenha sido tomada.

No que se refere à aquisição de terras por estrangeiros, o Governo Federal perdeu o controle que existiu de 1971 até 1994 e deu continuidade à política de FHC, com a permissão de compras de extensas áreas de terras por empresas estrangeiras ou brasileiras controladas por estrangeiros.

Apenas em 2010, a Advocacia Geral da União reviu seu parecer e passou a entender que a venda de terras brasileiras a estrangeiros ou empresas brasileiras controladas por estrangeiros, estaria limitada ao máximo em cinco mil hectares, cuja soma das áreas rurais controladas por esses grupos não poderia ultrapassar 25% da superfície do município.

A decisão veio tardia e foi ineficaz, além de consolidar todas as aquisições anteriormente realizadas, configurando-se uma medida de extrema gravidade e atentatória à soberania nacional, ao manter sob domínio estrangeiro áreas próximas às fronteiras e na região amazônica.

Assim, no governo Lula, pouco há a comemorar em favor da agricultura camponesa. Mas temos o dever de registrar essas exceções para estimular a sua multiplicação. Por exemplo, o Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) foram transformados em políticas públicas permanentes, através de decretos assinados por Lula.

Um outro fato positivo foi a reestruturação da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), que praticamente não existia e que virou um instrumento importante para a comercialização da agricultura familiar e camponesa.

Também é merecedor de reconhecimento que o Governo Federal tenha deixado de ser um agente ativo na criminalização de trabalhadores sem-terras, de suas lideranças e de seus movimentos. O que dificultou os esforços do agronegócio junto à Justiça, um poder que pouco tem melhorado nesses anos, no trato das questões agrárias e no reconhecimento dos direitos de cidadãos humildes e explorados.

Diante da existência dessas poucas ações importantes e positivas, em contraste com a abundância do mau desempenho do Governo Lula na Reforma Agrária, o próximo governo tem que ter um posicionamento firme, com ações concretas, nas questões estratégicas da Reforma Agrária, a exemplo de (1) assumir efetivamente a vontade política de realizar a reforma agrária e de defender a agricultura familiar e camponesa; (2) ter um orçamento compatível e do tamanho das demandas, da dignidade e dos direitos do povo do campo; (3) propor um modelo que priorize a soberania alimentar baseado na produção camponesa; (4) Limitar o tamanho da propriedade da terra; (5) assegurar a aprovação do Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001 PEC, que prevê o confisco de terras de escravagistas; (6) garantir a demarcação das terras indígenas e Quilombolas; (7) promover a aferição da função social da terra pelos vários pontos fixados pela Constituição Federal; (8) atualizar, enfim, os índices de produtividade.

No Brasil, não poderá haver desenvolvimento alternativo, democrático e sustentável sem uma reforma agrária intensa e extensa. Atualmente, todo o Mundo se volta para as questões do meio ambiente e à necessidade de salvar o planeta. A reforma agrária e a agricultura familiar e camponesa são partes essenciais desse esforço inadiável para se alcançar a sustentabilidade desejada na agricultura, na produção de alimentos e nos modelos produtivos. Igualmente nessa parte, o Governo Lula beneficiou o latifúndio no debate, na formatação e na tramitação do projeto do novo Código Florestal.

O período que agora se encerra com o final do segundo mandato do Presidente Lula, produziu resultados evidentes na formação de Consumidores, mas não na formação de Cidadãos. Os desafios são imensos para que a migração que ocorreu entre as classes sociais não seja meramente provisória. Na verdade, o fato positivo de poder consumir é apenas uma parte da cidadania, a qual somente se estabiliza com o acesso ao conhecimento, à educação, à terra, às condições de nela produzir, dentre outros atributos que o Governo Lula não soube, nem quis assegurar ao povo do campo.

Assim, diante das demandas da reforma agrária e da agricultura familiar e camponesa, é imensa a missão da Presidenta da República recentemente eleita. Com o apoio da maioria do Congresso Nacional, a futura Presidenta efetivamente terá, nesses campos estratégicos, a missão de fazer a Reforma Agrária que nunca foi feita no Brasil.

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