9 de fev. de 2010

Como deslizar uma encosta

Escrito por Paulo Metri, conselheiro da Federação Brasileira de Associações de Engenheiros.
Fonte: Correio da Cidadania


A relação causal é, muitas vezes, difícil de ser corretamente identificada. É comum identificar-se só uma causa, quando acontecimentos podem ter vários fatores causadores. Outras vezes, identifica-se como preponderante uma causa que, na verdade, é só intermediária e derivada de uma original. Por exemplo, diz-se, comumente, que a tuberculose é causada pela miséria, quando esta não é a causa original. A ganância capitalista é o principal fator causador da miséria e, conseqüentemente, da tuberculose.

Encostas deslizam, pessoas morrem e a identificação de culpados começa. Artigos e mais artigos são escritos sobre o tema, mas há algo inconcluso ou errado. Não nego que pessoas constroem moradias em encostas de risco e algumas destas pessoas jogam lixo nas encostas; concordo que há necessidade de o estado do Rio de Janeiro ter um órgão para mapear as áreas de risco, proibir construções nas mesmas, conter as mais perigosas etc.

Entretanto, busco adicionar o que não foi dito. Busco mostrar que os únicos responsabilizados são os politicamente frágeis e a administração pública, porque, neste caso, a caracterização do culpado específico é difícil.

Primeiramente, não assentamos o homem no campo, apoiamos latifúndios improdutivos que não empregam quase ninguém. Empurramos milhões de pessoas que seriam felizes e produtivas no campo para serem os miseráveis das cidades, deixando-as superpovoadas.

Assim, o tão perseguido MST não é um movimento social que visa simplesmente os assentamentos de terra. Visa a estes e também a conter o êxodo rural, diminuir a demanda por habitações nos grandes centros, diminuir a população favelada, resolver o problema do transporte de massa nas grandes cidades, desobstruir o trânsito, conter a demanda pelo fornecimento de água e esgoto. Além de atendimentos na rede hospitalar e conservação de energia, à medida que cada pessoa que migra do campo para a cidade passa a consumir quatro vezes mais energia. O MST busca, no final, um mundo sustentável, justo e racional.

Este contingente imenso de miseráveis expulsos do campo busca a sobrevivência nas cidades, que não têm moradias disponíveis para quem não tem nada. Então, eles são empurrados para as encostas, que no estado do Rio são muitas. Nenhum deles vai para os morros porque a vista é bonita - que na verdade é.

Vão para lá porque sempre há um barraco barato próximo do trabalho, quando o transporte coletivo é demorado e superlotado, e as opções mais caras de meios de transporte são reféns de vias de rolamento de veículos saturadas.

E, pelo amor de Deus, não vamos autoritariamente empurrá-los para regiões distantes de seus trabalhos, sem lhes dar opções de transporte rápidas e confortáveis, que foi o que fez um administrador da atual cidade do Rio de Janeiro, no passado.

Mas pessoas com alto poder aquisitivo também têm sido soterradas em deslizamentos. Nestes casos, em parte, devido à total desinformação do perigo pelo proprietário e à eventual ganância do construtor ou incorporador, ou ainda à desinformação destes.

Assim, mortes por deslizamentos em áreas pobres são conseqüências do modelo político e econômico, concentrador de renda, vigente no nosso país. Se existisse opção de moradia digna acoplada a transporte digno, não existiriam pobres nas encostas e estas não estariam degradadas e muitas nunca deslizariam.

Portanto, agora, mais do que em qualquer tempo, é de grande mérito o programa de construção popular do governo Lula, sendo necessário somente expandi-lo ao máximo para poder suprir o déficit habitacional existente. Poderia até vir a ser chamado de "Minha casa segura, minha vida".

7 de fev. de 2010

O Vale do Jequitinhonha e Germinal: distorções de uma mesma realidade

Por Cristiane Maria Magalhães, historiadora e professora universitária

Surgiam homens; um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos alqueives, nascendo para as colheitas do século, e cuja germinação não tardaria a fazer rebentar a terra” (ZOLA: 1956)

Emergindo do interior da terra, das profundezas das minas de carvão francesas, homens e mulheres como sementes germinavam sob o solo negro nas palavras do escritor Émile Zola. O livro Germinal é uma semente plantada no coração dos trabalhadores franceses do final do século XIX, legitimando-os como personagens literários e incitando-os, pós-Germinal, a também escreverem a sua versão da história. O livro publicado em 1885 é inovador, pois foi o primeiro romance escrito sobre as Minas de Carvão, na França, e a primeira vez que um escritor colocou os homens simples – os operários e suas famílias, como protagonistas de um romance. Os mineiros franceses são heróis e vilões, personagens principais desta história onde a fome, a miséria e a desgraça convivem lado a lado nos cortiços imundos.

O romance Germinal incita, revolta e mostra a face mais cruel da exploração do homem pelo homem. Considerado um romance socialista foi duramente criticado, mas nada deteve o seu sucesso e até os dias atuais ainda é o maior romance escrito sobre as Minas de Carvão. Para escrever o livro, Émile Zola conviveu alguns meses com os mineiros franceses, desceu nas perigosas minas de carvão, esteve nas vilas operárias, conheceu o cotidiano e o ofício de homens e mulheres que retiravam dali o seu sustento. A história sobre a qual se desenrola o livro é ficcional, mas o contexto e as condições de trabalho e moradia são reais.

Vocês devem estar intrigados por saber o motivo de, neste momento, eu recorrer aos fios da memória e trazer à tona um livro escrito há tanto tempo, que fala de uma realidade vivenciada por operários franceses do final do século XIX. Distantes no tempo e no espaço, os protagonistas de Germinal surgiram em minha memória ao vivenciar aqui, na vida real, o que já vi inúmeras vezes estampado em jornais e na televisão.

Circunstâncias adversas trouxeram-me para o Vale do Jequitinhonha, mais precisamente para a região do Baixo Jequitinhonha. Considerada uma das regiões mais miseráveis do país, o lugar vem ganhando há décadas os codinomes de “Vale da miséria” e “Vale da pobreza”, entre outros. Acostumada à região central do Estado mineiro, com todas as facilidades que uma região desenvolvida pode proporcionar, mudar para um lugar distante e tão diferente como é aqui tem sido uma experiência estranha, mas não menos gratificante e enriquecedora.

Num primeiro momento o que espanta é a quantidade de pessoas em idade “produtiva” vagando pelas ruas – sem trabalho, sem profissão. Outro fator que assusta é o aumento da criminalidade. Não é incomum ver grupos de pivetes assaltando à luz do dia ou se organizando em becos e esquinas. Dizem que a noite a situação se complica ainda mais, fato que eu não arrisco comprovar. O aumento do tráfico e consumo de drogas é outro evento apontado pelos moradores da região. Não é novidade que a marginalização produz a criminalidade.

Como observadora e pesquisadora, não pude deixar de questionar os motivos do aumento da criminalidade em uma cidade tão pequena – pouco mais de 30.000 habitantes, numa das regiões mais pobres do país. Para minha surpresa e revolta as respostas sempre apontam para os auxílios financeiros oferecidos pelo governo federal – o conhecido Bolsa Família.

Na primeira semana de cada mês as filas na Caixa Econômica Federal e nas Loterias são gigantescas. São inúmeras as pessoas que usufruem do benefício concedido pelo governo; mulheres, homens, crianças, adolescentes se acotovelam esperando a vez de receber o seu quinhão do bolo estatal.

Por causa do Bolsa Família muitas pessoas simplesmente deixaram de trabalhar. Os próprios moradores afirmam ser complicado encontrar empregada doméstica ou homens disponíveis para fazer pequenos serviços de reparos e capina. As professoras estão desanimadas, os alunos vão às escolas públicas sem qualquer interesse, ao contrário, vão para fazer algazarra, pois são obrigados pelos pais que não querem perder o benefício. A exigência é apenas a presença e não a qualidade do aprendizado.

Então, a culpa é do benefício dado pelo governo federal na tentativa de atender aos mais necessitados? Não, não é do benefício e sim de como o beneficio está sendo distribuído: indiscriminadamente e sem um acompanhamento, sem instrução para o povo que apenas o recebe sem aprender qualquer ofício. O povo não precisa de esmolas e sim de educação. Claro que o povo não tem consciência disso, se lhe fosse dado, opção pediria para ficar como está.

Sem contar as fraudes, ou seja, muitos assistidos que não são necessitados. Muitos dirão: ah, mas o governo tem que contar com a honestidade das pessoas, pois ele não tem olhos para estar em todos os lugares e garantir que apenas os necessitados recebam o auxílio! Honestidade?! Palavra que perdeu o seu significado há muito tempo em nosso país. Não é demais lembrar que o dinheiro utilizado para pagar os benefícios vem do meu, do seu bolso. O fermento que alimenta e faz crescer o Estado são os nossos impostos.

Mas o que tem a ver o Germinal, o Bolsa Família, a miséria e a alienação na qual vive o povo do Vale do Jequitinhonha?

O que mais choca ao ler Germinal é a miséria na qual vivem as pessoas. A degradação humana diante da fome, da humilhação e a impotência dos mineiros diante da exploração impiedosa dos proprietários das minas. Eles não têm voz. O que nos choca, no Brasil, é a miséria, a fome, a pobreza. Nosso povo não tem voz! E, quando tem, não há ouvidos dispostos a ouvi-la.

A faculdade onde leciono está organizando um Seminário Educacional onde serão discutidos e apresentados diversos aspectos do Vale do Jequitinhonha. Na busca de argumentos para as discussões no Seminário visitei com minhas alunas do curso de Serviço Social duas famílias assistidas pelo Bolsa Família. E foi no meio daquela miséria que lembrei do livro Germinal. Não pela miséria em si, tão conhecida e aclamada pela mídia, mas pela nossa hipocrisia diante dela. Somos hipócritas! Eu, você, todo mundo. Salvo algumas vozes perdidas, alguns ouvidos cansados. Somos todos hipócritas na pele de solidários condoídos. Hipócritas com discursos inflamados, sem ação. Hipócritas ao apregoar o bem, ao apontar o dedo, ao nos sensibilizarmos diante da pobreza.

Em determinado momento do livro, um grupo de mulheres “solidárias” visita a Vila onde moravam os operários das minas, com suas famílias. Não há móveis nas paupérrimas casas, não há comida suficiente para todos, não há agasalho, não há lenha para aquecer do terrível inverno francês. O grupo, composto pelas esposas dos industriais proprietários das minas de carvão, faz parte de uma associação beneficente, que tem como objetivo assistir aos carentes. Elas chegam trajando roupas de luxo, do alto dos seus saltos, guarnecidas de agasalho e perfumes, destoando completamente da pobreza daqueles casebres, elas chegam para “comprovar” a miséria. Tão pobres e tão limpinhos! Coitadinhos! Quando elas vão embora, eles continuam com fome, frio e doentes. Elas satisfeitas por ter ido oferecer migalhas do seu tempo e palavras de solidariedade.

O escritor descreve o olhar de uma destas visitantes, na seguinte passagem:

Já a senhora Hennebeau estava amolada; contente, ao princípio de se distrair com aquele papel de quem anda a mostrar bichos no tédio do seu exílio, repugnava-lhe agora aquele cheiro insípido de miséria, apesar do asseio das casas escolhidas em que se enfiava. Aliás, não fazia mais do que repetir frases ouvidas daqui e dali, sem nunca dar maior importância àquele povo de operários que suava e sofria junto dela” (ZOLA: 1956, p. 95).

É essa passagem do livro que me vem à mente quando estive dentro das casas daquelas duas famílias. Como aquelas mulheres, procuramos uma favela, um bairro pobre para o banquete das nossas perguntas. Ali, saciaríamos os nossos desejos e encontraríamos todas as respostas que estávamos procurando. Ali, comprovaríamos a ineficiência do benefício concedido pelo governo. Hipócritas, como as mulheres de Germinal, com nossos tênis bonitos, nossas máquinas fotográficas modernas – não, não poderíamos deixar de documentar a miséria, nossos pen-drive a postos para gravar aqueles gemidos.

Se encontramos respostas às nossas perguntas? Sim, todas! O banquete foi farto para o deleite da nossa hipocrisia. Nos dois casos fomos bem recebidas, da mesma forma que aquelas mulheres de Germinal foram. Fomos aclamadas com sorrisos amáveis e respostas abundantes.

A primeira família, uma senhora, 28 anos, 5 filhos e mais um no ventre, uma menina que se chamará Maria Luiza. O pai dos seus 5 filhos ela mandou embora, pois ele bebia e a espancava e aos meninos. O pai da menina na barriga, também foi embora, quando soube que ela estava grávida. A senhora tem uma filha, de 3 anos, internada há 06 dias no hospital local com bronquite-asmática. Fato que ela conta como se comentasse algo natural e corriqueiro. Como ela sobrevive? Com R$ 95,00 que recebe por mês do bolsa família. Há alguma outra fonte de renda? Não, não há. Ela recebe ajuda da Diocese local, que oferece leite e “misturas” nutricionais. Esses benefícios são oferecidos às famílias carentes com filhos até 5 anos de idade. A escola onde os dois filhos maiores estudam (um de 6 e outro de 10 anos), oferece também auxílio, doando roupas e sapatos. Quando pergunto se ela é feliz, ela diz que sim. Não há revolta em suas palavras, ao contrário, um sorriso ilumina o pequeno cômodo, feito de lona e coberto de sapé, onde ela vive com os filhos. Analfabeta, não sabe nem escrever o seu nome, a mulher diz que seu sonho era ser professora.... Como uma leoa, ela nos conta que mandou o marido embora por causa dos filhos que eram espancados. Pelos filhos afirma fazer qualquer coisa. Não conhece nenhuma outra cidade mais distante da sua. Não passeia, não tem diversão, nem mesmo de televisão, pois não há luz e nem água encanada. - A senhora acha a vida boa ou ruim? Eu pergunto. “– A vida não é muito ruim não, ela diz e sorri. Tá bom até demais, porque eu gosto dos meus filhos perto de mim”. Se pudesse mudar alguma coisa, o que a senhora mudaria? Instigo novamente. “– Eu queria que mudasse mesmo era só a minha casa, o meu terreno, para poder ver se mudava mais um pouco, para ficar melhor um pouco e eu poder cuidar dos meus filhos melhor. Eu cuido deles bem, mas queria cuidar melhor ainda.” Ela diz novamente com um sorriso franco. “Dou a minha vida pelos meus filhos, por eles vou a qualquer canto procurar ajuda.”

A segunda família também é liderada por uma mulher. Ela, analfabeta, 43 anos e semi-paralítica. Suas pernas estão sem movimento, mas os médicos não sabem dizer o motivo. Ela tem dois filhos, um de 18 anos (segundo os moradores do local é bandido, envolvido em assaltos e tráfico de drogas) e uma menina de 6 anos, filhos de pais diferentes, os homens foram mandados embora pelo mesmo motivo da outra família: espancamento. Única renda mensal: R$ 65,00 do bolsa família. Ela não recebe mais leite da Diocese e nem as misturas, pois a filha completou 6 anos. Neste barraco, de um cômodo, tem água e luz. Com os $ 65,00 ela tem que pagar as contas e fazer a despesa. Ela disse que a menina está precisando de um chinelo, então, vendeu uma galinha que criava solta, para comprar. Antes da doença nas pernas e na coluna, que ela acredita ter sido causada pelos constantes espancamentos do seu último companheiro, ela lavava e passava roupa para algumas famílias, dinheiro com o qual sustentava a casa. Agora, imobilizada e um filho marginalizado, resta-lhe o auxílio oferecido pelo governo. No único cômodo onde moram, há apenas uma cama. Perguntei onde dormia o rapaz, pois deduzi que na cama dormiriam a mulher e a menina, ela respondeu que ele nunca teve cama e que dormia sempre num colchão colocado no chão. Ao ser perguntada o que acha da vida, ela diz que é boa, e também sorri.

Saímos de lá amoladas como a Sra. Hennebeau ficou. Não pelo incômodo causado pela miséria, mas pela nossa hipocrisia diante dela. Hipócritas armadas com fotografias e vozes gravadas servindo de comprovação de que o sistema atual não está dando certo. Senti vontade de chorar, na esperança da dor e da revolta que estou sentindo diminuirem, mas sei que lágrimas não resolverão.

5 de fev. de 2010

Assentamento no Piauí simboliza limites do combate à escravidão

Libertados do trabalho escravo que conseguiram um pedaço de terra em Monsenhor Gil (PI) ainda não receberam créditos básicos para a fixação definitiva na área. "O assentamento só existe no nome", conta representante. Por Maurício Hashizume.
Fonte: Agência de Notícias Repórter Brasil


O testemunho do trabalhador rural Francisco José dos Santos Oliveira serve de referência do quanto ainda falta para que o país se veja livre do trabalho escravo. "Chiquinho", como é mais conhecido, está à frente da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Prevenção do Trabalho Escravo, que foi estruturada nos últimos cinco anos com ajuda da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e inclui pessoas que já foram vítimas da escravidão contemporânea. Depois de muita cobrança e paciência, as cerca de 40 famílias que fazem parte do grupo conseguiram um pedaço de terra no Assentamento Nova Conquista, criado em março do ano passado em Monsenhor Gil (PI), município a cerca de 60 km de Teresina (PI).

Com a conquista, eles viram se abrir a "porta de saída" das condições de pobreza e vulnerabilidade enfrentadas pelas potenciais vítimas do trabalho escravo. Infelizmente, porém, não conseguiram cruzá-la. "As coisas não melhoraram muito. Só a terra não basta", relata Chiquinho. Quando chegaram à área de 2,2 mil hectares, descobriram que um invasor privado já tinha se apossado de quase metade (mais de 900 hectares) com uma cerca. E o mais grave: até agora, os assentados ainda não receberam nenhum crédito de apoio para a instalação efetiva das famílias no local.

Os beneficiados sequer fixaram residência na terra desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). "O assentamento só existe no nome", conta o presidente da associação. Por ora, os trabalhadores se desdobram carregando tinas de água nas costas ladeira acima e plantando gêneros alimentícios na medida do possível. Paralelamente, organizam bingos para que as lideranças possam ir a Teresina em busca de financiamento público básico. De quebra, ainda sofrem ameaças indiretas de quem não vê com bons olhos o (incipiente) projeto de reforma agrária.

De acordo com Chiquinho, pelo menos dois chefes de família já abandonaram a iniciativa para voltar ao corte da cana-de-açúcar. Um dos casos mais efetivos de superação de pessoas sob risco de aliciamento para o trabalho escravo continua, portanto, como promessa. Os trabalhadores rurais, salienta o líder comunitário, não se submetem ao risco da migração para empreitadas temporárias por vontade própria. "As condições de vida são muito precárias. Temos que sustentar as nossas famílias. É arriscado, mas precisamos fazer algo", continua.

A história de Chiquinho e de seus companheiros simboliza as contradições enfatizadas por Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da CPT. Ao mesmo tempo em que intensifica e estende as fiscalizações repressivas contra o trabalho escravo, o governo federal não promoveu a democratização da terra que se esperava e ainda mantém uma relação estreita com setores conservadores do agronegócio envolvidos em flagrantes de escravidão. As denúncias encaminhadas e as libertações registradas ano após ano pela CPT são sinais evidentes de que, a despeito da série de esforços de segmentos da sociedade civil e do poder público, o problema perdura.

A reforma agrária e a mudança do atual modelo de desenvolvimento - que, no meio rural brasileiro, acaba resultando em graves impactos ambientais e sociais - também foram citados como meios concretos para a eliminação do trabalho escravo por Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil.

Chiquinho, Xavier e Leonardo fizeram parte da mesa que fez o balanço social na oficina "Trabalho escravo: o quanto já caminhamos e o que falta a fazer?", ocorrida quarta-feira (27), como parte da programação oficial da 10ª edição do Fórum Social Mundial 2010, em Porto Alegre (RS).

Política

O "termômetro" do Parlamento, abordado ao longo do painel sobre o balanço político e jurídico dos esforços contra o crime, também não tem caminhado no sentido da erradicação. "Apesar de algumas sinalizações e dos esforços de alguns setores para melhorar a legislação com vistas ao combate efetivo do trabalho escravo, o Congresso ainda está devendo muito", sustenta o senador José Nery (PSol-PA), da Subcomissão Permanente de Combate ao Trabalho Escravo e Acompanhamento da Regularização Fundiária da Amazônia Legal, ligada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH).

"Combater o trabalho escravo e defender o trabalho decente deveria ser um compromisso de todos", acrescenta José Nery, que anunciou o lançamento de uma frente parlamentar dedicada ao tema que reunirá vários deputados e senadores de diversos estados e partidos. O principal desafio colocado aos congressistas é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que propõe o confisco de terras de quem explorar mão de obra escrava. O senador lembra que a tarefa não será fácil, pois o Congresso está repleto de representantes dos grandes produtores rurais. Há inclusive casos de deputados - como Inocêncio Oliveira (PR-PE) - e senadores - como João Ribeiro (PR-TO) - que são proprietários rurais e foram envolvidos diretamente em episódios de trabalho escravo.

José Nery pinçou um parecer elaborado pelo senador Demóstenes Torres (DEM-GO) para demonstrar como é recorrente entre seus pares a alegação de que os flagrantes de trabalho escravo no Brasil são eivados de "subjetividade". No relatório sobre o Projeto de Lei (PL) 9/2004 de Marcelo Crivella (PR-RJ), que prevê a inclusão do Artigo 149 do Código Penal (Redução à condição análoga à de escravo) no rol de crimes hediondos, Demóstenes atribui "acentuada subjetividade" à normatização da matéria e sustenta que não são raros "os casos onde (sic) descumprimento de normas administrativas de segurança e saúde do trabalho ou mesmo de dispositivos da CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] têm sido considerados trabalho forçado".

"O argumento da subjetividade continua sendo utilizado como um impedimento para a aprovação das leis", declara José Nery. Foi o que ocorreu no caso Pagrisa, em que senadores capitaneados pela ruralista Kátia Abreu (DEM-TO) chegaram a montar uma comissão especial externa para contestar a fiscalização que libertou 1.064 trabalhadores de usina e fazenda em Ulianópolis (PA). "Impressiona o grau de tolerância de alguns parlamentares. Deveria ser zero", adiciona o senador que representa o Estado do Pará.

A PEC 438/2001 permanece estagnada, à espera de votação em segundo turno, no Plenário da Câmara dos Deputados. A votação em primeiro turno foi realizada em agosto de 2004, ainda sob efeito do clamor nacional resultante da Chacina de Unaí, episódio em que três auditores fiscais do trabalho e um motorista foram assassinados enquanto faziam inspeções em Minas Gerais.

Para tentar destravar a proposta, representantes da Frente Nacional Contra o Trabalho Escravo e pela Aprovação da PEC 438 - que já reuniu mais de 165 mil adesões por meio de abaixo-assinado -, da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e da aguardada frente parlamentar planejam intensificar as articulações junto aos líderes partidários e promover a entrega das assinaturas colhidas junto à sociedade no dia 13 de maio, quando a Abolição da Escravatura completará 122 anos.

A aprovação da PEC, classifica José Nery, "corresponde à assinatura de uma segunda Lei Áurea". A articulação entre governos, partidos, entidades públicas e privadas e sociedade civil, em geral, é crucial, na visão dele, para que tal propósito seja atingido. De imediato, um comitê de especialistas deve ser convocado para analisar o andamento das proposições legislativas relacionadas ao combate à escravidão. O parlamentar segue nutrindo a esperança de que a expropriação dos bens de escravagistas possa ser aprovada ainda neste primeiro semestre de 2010.

Justiça

No âmbito do Executivo, o ministro chefe da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), Paulo Vanucchi, reitera a intenção de realizar um encontro organizado pela Conatrae - com a possível presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de outras figuras emblemáticas como os chefes maiores do Poder Judiciário e do Poder Legislativo - nas proximidades de 13 de maio de 2010.

Apesar do trabalho dos que se dedicam ao combate à escravidão, o ministro salienta que ainda existem setores que ousam atacar a própria existência do problema no país - reconhecimento esse que já foi feito pelo próprio governo brasileiro perante a comunidade internacional. Paulo Vannuchi faz questão de destacar que esse esforço teve início no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e que prosseguiu com Lula.

A lógica da escravidão, para Paulo Vannuchi, é "inaceitável" e não está amparada no "subjetivismo", pois os critérios utilizados pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) são muito claros. Para tirar a prova, o ministro arrisca até um convite aos que "duvidam" das condições degradantes a participar de uma operação de resgate.

O representante do Poder Executivo enxerga raízes históricas que ajudam a explicar a continuidade do trabalho escravo e a polêmica que acompanhou a proposta de criação da Comissão Nacional da Verdade, que consta do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) e tem como objetivo "examinar as violações de direitos humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988 (...) a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional". A impunidade em relação aos abusos (seja diante das ditaduras do passado, seja diante da sucessão de violências contra indígenas nativos e negros que foram vítimas do tráfico de pessoas) dificulta a distinção definitiva entre a subordinação que tolhe o indivíduo e o trabalho livre, pleno de direitos.

Esta distorção acobertada pela impunidade, pela naturalização das desigualdades e injustiças sociais e pela desvalorização da força de trabalho, defende o ministro, precisa acabar. Para ele, não se trata de "revanche". "O que se quer jogar é luz. Conhecer para que não aconteça nunca mais", completa. "Não há democracia com trabalho escravo".

A associação entre o déficit de democracia e a realidade do trabalho escravo também faz parte das observações do juiz Marcus Barberino, do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15), que participou do balanço político e jurídico sobre o tema no FSM 2010. Na concepção dele, prevalece entre os juízes a tendência de priorização da liberdade em comparação com a igualdade, outro pilar central para a consolidação do ambiente democrático. Por causa dessa ênfase, o Judiciário - que carrega o fardo de "guardião da promessa civilizatória" - ainda enxerga a escravidão contemporânea como uma infração "meio" que tem como único "fim" o crime de cerceamento da "liberdade de ir e vir". Ocorre que o trabalho escravo, explica o juiz, é um crime per se, definido pelas condições expressas na legislação penal.

O trabalho escravo contemporâneo, observa Marcus, não se restringe às atividades rudimentares exercidas sob coerção de capangas armados nos "rincões do país", mas "perpassa toda a cadeia produtiva". A modalidade criminosa de exploração, complementa, é "central para a organização do próprio mercado de trabalho". Ele salienta que as ações administrativas no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) têm andamento e conseqüências, e que as punições na esfera criminal também precisam ganhar maior repercussão. "Não existe problema na sociedade se ele não é visível".

Nas oficinas temáticas voltadas aos operadores do Direito (que vem sendo realizadas em diversas capitais do país desde o ano passado e tem o apoio da SEDH/PR e dos Tribunais de Justiça de diferentes Estado), Marcus tem notado a existência de uma "imagem distorcida" da escravidão contemporânea e a falta de preparo e treinamento "para cuidar de um problema dessa dimensão". Ele defende uma compreensão mais ampla dos casos, com vistas não apenas na punição dos "culpados", mas também na busca de ações preventivas e promocionais do meio ambiente do trabalho de maior alcance, relacionadas ao conjunto do segmento econômico.

A aprovação da emenda que determina a expropriação da terra dos proprietários rurais escravagistas contribui para esse conceito mais ampliado de responsabilidade, sublinha o juiz do TRT-15. "Trata-se de um estímulo econômico para o cumprimento da legislação trabalhista", comenta. Nesse sentido, a preocupação crescente com as questões ambientais corrobora para o envolvimento de uma gama maior de agentes.

As perspectivas do "fim do trabalho" e do enquadramento da geração de empregos como "ato de caridade" também dificultam o combate ao trabalho escravo. "Precisamos reverter isso", coloca Marcus. Tradicionalmente ligada ao sonho por dias mais felizes, a migração ganha ares de desalento no caso dos aliciados para a escravidão. Nesses casos, segundo o juiz, inexistem estruturas capazes de fazer com que a pessoas tenham dignidade sem se submeter a essas incertezas quanto à sobrevivência.

Pressão

Representantes do MPT e do MTE também participaram da oficina sobre trabalho escravo no FSM 2010. Sebastião Caixeta, da Coordenação Nacional do Combate ao Trabalho Escravo (Conaete), lembra que, no início dos esforços, a participação dos procuradores do trabalho se dava mais na parte repressiva - na participação dos grupos móveis, na negociação de acordos e na autoria de ações civis públicas. Com o tempo, o MPT passou a atuar não apenas de forma reativa aos casos flagrados, mas também no sentido da verificação de cadeias produtivas como um todo, da prevenção do crime e da reinserção de trabalhadores egressos da escravidão.

Como resposta a essas demandas, o MPT montou um grupo especial para a promoção do trabalho decente no setor sucroalcooleiro, pretende coletar dados sobre aliciamento nos municípios pobres com maiores índices de migração de trabalhadores para coibir a ação dos chamados "gatos" (recrutadores terceirizados) e reforçar a contratação por meios regulares, e está dando suporte aos projetos de capacitação técnica de libertados no Mato Grosso. Recentemente, a Conaete finalizou ainda um marco jurídico institucional relativo à definição do trabalho escravo, baseado em experiências práticas, como resposta à acusação de "subjetividade" das inspeções.

A conexão dos fazendeiros flagrados com o poder político e econômico está por trás dos protestos contra a aplicação do Art. 149 do Código Penal, conforme Marcelo Campos, da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE. Ele fez um balanço positivo dos esforços de combate ao trabalho escravo desde 1995, quando foram realizadas 11 operações do grupo móvel, para 2008, ano em que houve 149. Duas edições (2003 e 2008) do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE) já foram elaboradas, com metas atribuídas a diferentes atores comprometidos com o combate ao crime.

A "lista suja" do trabalho escravo, divulgada desde 2004, se converteu em instrumento efetivo para inibir incentivos públicos federais e para referendar o corte de relações comerciais por parte das empresas e associações signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Além disso, já houve pelo menos 36 condenações - primeiro um pacote de 27 condenações e depois mais 9, todas de Carlos Henrique Borlido Haddad, da Vara Federal de Marabá (PA). "Seria difícil imaginar que avançaríamos tanto", declara.

"É uma vergonha saber que ainda existe trabalho escravo, mas é um orgulho ver o que já fizemos", adiciona Marcelo, do MTE. O reconhecimento de erros e a comemoração dos avanços são importantes para fortalecer a luta e afastar o perigo de desmonte do que já foi conquistado, analisa. No Brasil, adiciona, o direito à propriedade vem antes de outros direitos: as pessoas se mostram mais indignadas com o roubo de uma carteira do que com o abandono de pessoas que sofrem ao relento nas ruas da cidade, ou seja, os direitos humanos são "rebaixados" e os próprios empregados recorrentemente não se empenham em valorizar o trabalho.

Em apoio às palavras de Marcelo, Xavier Plassat reconhece iniciativas importantes tanto em nível federal como nas esferas estaduais. "Mas às vezes a gente se sente um pouco só", desabafa. O representante da CPT aponta a participação de movimentos sociais e de entidades organizadas como fundamental ao combate ao trabalho escravo, pois se trata de um tema que exige transversalidade e pode ser incorporada como bandeira comum.

Nesse contexto, as sanções econômicas decorrentes do Pacto Nacional não necessariamente resolvem o problema, mas acabam sendo uma reação de mercado, complementa Leonardo Sakamoto, da Repórter Brasil. Complementarmente com a cadeia produtiva, as pessoas dispostas a colaborar com a causa podem se mobilizar para a mudança no padrão de consumo, com escolhas que possam causar menos impactos sociais e ambientais. "A compra é um ato político", diz. A escolha dos parlamentares que farão parte da próxima legislatura do Congresso Nacional também pode ter influência direta no combate à escravidão, adverte Leonardo, pois alguns dos políticos, especialmente os ruralistas, atuam abertamente contra a aprovação de matérias cruciais para a punição exemplar de infratores como a PEC 438/2001.

Coordenadora das mesas da oficina, Laís Abramo, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), confirma que a condição do Brasil de vanguarda internacional no enfrentamento à escravidão. "A diversidade de atores e de pontos de vista demonstra a riqueza da experiência brasileira", afirma. "Mas isso não significa que devemos nos dar por satisfeitos", pondera, sem esquecer de convocar agentes da sociedade civil a manter a tensão e a pressão constantes. "Quando se trata de trabalho escravo, não existem objetivos parciais, intermediários, que sejam satisfatórios. A meta é uma só: a erradicação".