17 de mar. de 2010

Os ''vícios'' que a Cutrale não consegue esconder

A empresa Suco Cítrico Cutrale ignorou as negociações com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2007. Mesmo ao saber que as terras que iria comprar eram terras públicas. Um grupo de trabalho do Incra coordenado pela procuradora federal, Maria Cecília Ladeira de Almeida, concluiu que nos títulos dos imóveis rurais dessa região foi constatado a existência de diversos “vícios insanáveis”, ou seja, irregularidades que propiciaram a grilagem na região. A entrevista é de Eduardo Sales de Lima e publicada pelo jornal Brasil de Fato, 12-03-2010. A procuradora e professora universitária Maria Cecília Ladeira de Almeida aprofunda informações relevantes para a compreensão das irregularidades cometidas pela empresa produtora de derivados da laranja. Fala também sobre a falta de ética da Cutrale em suas ações jurídicas junto à União.
Fonte: UNISINOS



O grupo de trabalho do Incra, coordenado pela senhora concluiu que nos títulos dos imóveis rurais do Núcleo Monção foi constatada a existência de diversos “vícios insanáveis”. Que são esses vícios?

Esses “vícios” se relacionam a títulos falsificados, grilados, criados sem um outro que o anteceda e assim por diante. Mas não só deve existir uma cadeia de pessoas titulares do imóvel, como a descrição tem que ser a mesma, a não ser que se desmembre em dois imóveis, ou você adquire um outro imóvel e acrescente ao seu. Se não houve nenhuma movimentação do espaço físico, nem desmembramento, nem agregação, aquilo que está descrito na primeira matrícula, tem que estar na segunda, na terceira, e assim por diante. Isso se chama Princípio da Continuidade dos Registros Públicos. Quando não há essa continuidade, o título é insanável frente ao poder público. Há situações no Núcleo Monção, em que encontramos imóveis que literalmente “escorregaram”. Eles têm como origem um inventário do lado de cá da serra, e a pessoa, com base nesse inventário, foi partilhando essa gleba enorme do lado de lá da serra. Então o imóvel está do outro lado do rio, do outro lado da montanha, às vezes mais de trinta quilômetros de distância do origem documentada.

Essas informações constituem o tal vício insanável?

Sim. Eu tenho um imóvel cuja descrição, pensando em área urbana, tem sala, cozinha e banheiro; mas quando olho o imóvel, é meio quarto, dez banheiros. A descrição do papel tem que ser exatamente o que está no chão.

Então houve inúmeras falsificações para a aquisição de terras no núcleo?

Principalmente quando a descrição é completamente diferente. Pode ser assim: lá na origem, o primeiro título veio por uma falsificação. Há casos de responsáveis por parte do governo federal, da criação do núcleo, que assinaram depois de mortos.

E o que aconteceu com as terras que a Cutrale ocupou?

É exatamente essa situação. A Cutrale ocupa uma área em que o que está descrito não é onde ela está. Não coincide uma coisa com outra. É um vício insanável na origem. Quando a Cutrale plantou na área já sabia que a terra era pública.

E o que ocorre especificamente com o título da fazenda Turvinho ocupada pela Cutrale?

A origem da cadeia dominial deles não existe. A Cutrale tem um título que não possui um outro que o anteceda. Quer dizer, o título tem um que antecede, tem outro, mas não existe, de fato.

A Cutrale permanece na área com base em algumas ações judiciais protelatórias. De que forma essas ações dão a segurança a sua permanência em terras públicas?

Quando eles constataram que tinham comprado terras que não são de domínio particular, que são da União, eles tomaram a seguinte medida. Como a área ocupada abrange dois municípios que tem cartórios de registro de imóveis, eles registraram toda a área nesses dois municípios. Um cartório se negou, dizendo que era necessário georreferenciar as terras, porque eram terras públicas. Um era de Cerqueira César e, outro, de Lençóis Paulista. Este último fez o registro sem o georreferenciamento. Está errado. Aí é problema do cartório com a Justiça.

O Incra tentou um acordo com a empresa?

Em 2007, os advogados da Cutrale vieram aqui e começamos a negociação. Queríamos encontrar uma saída. Faríamos uma permuta. Eles permaneceriam onde já estavam, onde eles compraram já sabendo que era terra pública; e eles nos dariam uma área equivalente agronomicamente falando. Isso foi uma grande concessão do Incra, porque quem tenta de má-fé, perde o que plantou. Então, legalmente, o Incra poderia ficar com a área, com a plantação, mas isso não é interessante para o país.

Entretanto, antes da negociação, o Incra já tinha entrado com a ação reivindicatória e o juiz já tinha concedido a posse para nós, que era impossível não conceder. Mas, não poderíamos deslocar agrônomos do órgão para tomar conta da plantação de laranjas, então, o fiel depositário ficou sendo a própria Cutrale. Essa era a maior demonstração que nós tínhamos o interesse de fazer um acordo. Mas a confiança foi desfeita. Paralelamente às mesas de negociações, eles se dirigiram a um desembargador que suspendeu a imissão de posse e a devolveu para a Cutrale, em que pese o título ser nulo e todas as provas que temos.

Eles continuam com posse do imóvel até a discussão de qual título vale mais, o nosso, ou o deles. Houve por parte dos advogados da empresa uma falta de ética muito grande. Antes de fazer isso, eles deveriam dizer, 'vamos romper as negociações. Todas as medidas legais para reverter esse quadro estão sendo tomadas. O que não quer dizer que nós abandonamos a mesa de negociação.