8 de mai. de 2009

Do jejum material dos pobres ao jejum formal de quem os persegue

Por Antonio Cechin - irmão marista, miltante dos movimentos sociais - e Jacques Távora Alfonsin - advogado do MST e procurador do Estado do Rio Grande do Sul aposentado.
Fonte: UNISINOS

O jejum iniciado pelos Sem-Terra em Porto Alegre, contra uma ordem judicial de desocupação do acampamento Jair da Costa, em Nova Santa Rita, oportuniza avaliarem-se, quando menos, o sentido desse tipo de protesto e alguns graves problemas relacionados com o tratamento que o Judiciário dá aos próprios acampamentos espalhados pelo Estado e o país. Em contexto moral e espiritual, o jejum faz depender os seus efeitos sobre outras pessoas, da fé de quem jejua, como dá testemunho o próprio Jesus Cristo no famoso episódio da cura de uma criança quando, inquirido sobre a impotência dos seus apóstolos em curá-la, afirmou que, para aquele tipo de mal, somente a fé e o jejum têm capacidade curativa.

O jejum como protesto político, por outro lado, já serviu de apoio, no passado, a muitos movimentos populares que lutaram pelo reconhecimento de direitos humanos de multidões pobres oprimidas. Gandhi é um exemplo emblemático disso. Aqui no sul, os Sem-Terra já fizeram o mesmo, mais de uma vez, inclusive com a participação de religiosos das igrejas cristãs.
Dom Capio, no nordeste, jejuou mais de uma vez contra a transposição do rio São Francisco. O sentido dessas duas formas de jejum - as últimas identificadas também como greve de fome - faz-nos pensar que elas têm um ponto em comum. Aquela forma de jejum de referência espiritual prefere privar-se de satisfazer uma necessidade vital enquanto tal satisfação (cura de uma doença como ocorreu no episódio evangélico acima lembrado) não alcançar o efeito que ela objetiva. Aí existe uma fé solidária dotada de uma tal radicalidade que amplia esforços pessoais e alheios, chama a atenção de todo o mundo com uma tal energia e força que as finalidades do jejum passam a ser assumidas por outras pessoas, numa onda de adesão capaz de “remover montanhas” como Jesus Cristo, igualmente, o afirmou, em relação à fé.

Ora, não parece ocorrer o mesmo com o jejum de protesto, ou, se se quiser, a greve de fome? Esse tipo de jejum denuncia, pelo lado dos jejuadores ou grevistas, uma carência material própria ou de outras pessoas, numa situação de tal gravidade que esteja pondo em risco sua dignidade, cidadania, até mesmo a própria vida. A fé, nesse caso, convencida de que o jejum interromperá o ciclo perverso da situação opressiva, se opõe com tal poder solidário, igualmente, que, se não supera as conseqüências injustas dessa situação, desmoraliza completamente os responsáveis por ela. É bem o que está ocorrendo agora, em Porto Alegre, com o jejum dos Sem-Terra em plena calçada de um dos prédios-sede do Ministério Púbico Federal. A presença dessa gente trabalhadora e pobre, no referido local, é parte de outra multidão em situação social de histórico risco, no acampamento Jair da Costa em Nova Santa Rita. Centenas de famílias estão ameaçadas de serem expulsas dali, por iniciativa de um procurador da república, e ordem emanada de um juiz de Canoas. Nenhuma chance sequer de defesa processual, nesse caso, foi permitida aos Sem-Terra, antes da tal ordem, e o recurso que eles interpuseram depois, contra o tal mandado, não foi provido pelo Tribunal Federal da 4ª Região.

Independentemente das razões que alegadamente sustentam essa ordem, algumas questões incomodam e preocupam, se não aqueles de quem ela emanou, qualquer pessoa do povo dotada de um mínimo senso de justiça: a formação desse, como de outros acampamentos de Sem-Terra no Estado, é feita por vontade própria desse povo, é criminosa, prejudicial ao meio-ambiente, a ponto de ele ser coagido a sair de qualquer canto onde ponha o pé?

Sendo o Ministério Público, tanto o estadual quanto o da União, integrante do Poder Judiciário, a única solução legal e justa para esse problema é o exercício, por essa parte do Poder, da força sancionatória que ele tem, contrário a permanência dessas multidões onde quer que elas se encontrem?

O histórico atraso da reforma agrária, legalmente prevista na Constituição Federal, não tem que ser levado em consideração, nas ações judiciais que visam incriminar e punir agricultores Sem-Terra?

Por que, aqui no Rio Grande do Sul, de modo muito particular e diferenciado de outros Estados do país, as questões que envolvem o destino dessas multidões não encontram outra solução legal e justa que não as do sacrifício que agora motiva o jejum de uma parte delas?

Aqui se expõe à crítica das/os leitoras/es o que pode ser entendido por um outro jejum, mas esse, não do alimento material, mas sim daquilo que se pode identificar como o que se priva de conhecer o “espírito da lei” seja ela a moral, seja ela a do Estado. A ideologia formal que impõe esse jejum não é aquela dos dois outros acima lembrados. Ela não tem, como aqueles, a “fome e sede de justiça”. Inspira-se na lei? Pode até ser, mas, predominantemente técnica e não ética, à moda farisaica, somente naquela que domina e não na que liberta, não na que existe para as pessoas, mas somente naquela que as pessoas existem para “justificá-la” (?), a que mantém os famintos sem comida e os sem-teto sem casa. Jejua de justiça, mas se alimenta bem de doutrinas, rubricas, artigos, incisos, jamais se permitindo chegar ao rés do chão do outro jejum, aquele material, o sofrido nas relações sociais geradoras de pobreza e miséria.

Quem ouve os jejuadores que estão frente ao prédio do Ministério Público aqui em Porto Alegre, sai convencido de que os agricultores Sem-Terra acampados vão resistir à ordem de desocupar o acampamento Jair da Costa. O risco de morrerem como esse pobre operário sapateiro morreu, vítima de repressão oficial, apenas comprova que, em nosso país, especialmente em nosso Estado, o chamado Estado democrático de direito jejua de razão e de verdade, mas se alimenta de injustiça.