7 de fev. de 2010

O Vale do Jequitinhonha e Germinal: distorções de uma mesma realidade

Por Cristiane Maria Magalhães, historiadora e professora universitária

Surgiam homens; um exército negro, vingador, que germinava lentamente nos alqueives, nascendo para as colheitas do século, e cuja germinação não tardaria a fazer rebentar a terra” (ZOLA: 1956)

Emergindo do interior da terra, das profundezas das minas de carvão francesas, homens e mulheres como sementes germinavam sob o solo negro nas palavras do escritor Émile Zola. O livro Germinal é uma semente plantada no coração dos trabalhadores franceses do final do século XIX, legitimando-os como personagens literários e incitando-os, pós-Germinal, a também escreverem a sua versão da história. O livro publicado em 1885 é inovador, pois foi o primeiro romance escrito sobre as Minas de Carvão, na França, e a primeira vez que um escritor colocou os homens simples – os operários e suas famílias, como protagonistas de um romance. Os mineiros franceses são heróis e vilões, personagens principais desta história onde a fome, a miséria e a desgraça convivem lado a lado nos cortiços imundos.

O romance Germinal incita, revolta e mostra a face mais cruel da exploração do homem pelo homem. Considerado um romance socialista foi duramente criticado, mas nada deteve o seu sucesso e até os dias atuais ainda é o maior romance escrito sobre as Minas de Carvão. Para escrever o livro, Émile Zola conviveu alguns meses com os mineiros franceses, desceu nas perigosas minas de carvão, esteve nas vilas operárias, conheceu o cotidiano e o ofício de homens e mulheres que retiravam dali o seu sustento. A história sobre a qual se desenrola o livro é ficcional, mas o contexto e as condições de trabalho e moradia são reais.

Vocês devem estar intrigados por saber o motivo de, neste momento, eu recorrer aos fios da memória e trazer à tona um livro escrito há tanto tempo, que fala de uma realidade vivenciada por operários franceses do final do século XIX. Distantes no tempo e no espaço, os protagonistas de Germinal surgiram em minha memória ao vivenciar aqui, na vida real, o que já vi inúmeras vezes estampado em jornais e na televisão.

Circunstâncias adversas trouxeram-me para o Vale do Jequitinhonha, mais precisamente para a região do Baixo Jequitinhonha. Considerada uma das regiões mais miseráveis do país, o lugar vem ganhando há décadas os codinomes de “Vale da miséria” e “Vale da pobreza”, entre outros. Acostumada à região central do Estado mineiro, com todas as facilidades que uma região desenvolvida pode proporcionar, mudar para um lugar distante e tão diferente como é aqui tem sido uma experiência estranha, mas não menos gratificante e enriquecedora.

Num primeiro momento o que espanta é a quantidade de pessoas em idade “produtiva” vagando pelas ruas – sem trabalho, sem profissão. Outro fator que assusta é o aumento da criminalidade. Não é incomum ver grupos de pivetes assaltando à luz do dia ou se organizando em becos e esquinas. Dizem que a noite a situação se complica ainda mais, fato que eu não arrisco comprovar. O aumento do tráfico e consumo de drogas é outro evento apontado pelos moradores da região. Não é novidade que a marginalização produz a criminalidade.

Como observadora e pesquisadora, não pude deixar de questionar os motivos do aumento da criminalidade em uma cidade tão pequena – pouco mais de 30.000 habitantes, numa das regiões mais pobres do país. Para minha surpresa e revolta as respostas sempre apontam para os auxílios financeiros oferecidos pelo governo federal – o conhecido Bolsa Família.

Na primeira semana de cada mês as filas na Caixa Econômica Federal e nas Loterias são gigantescas. São inúmeras as pessoas que usufruem do benefício concedido pelo governo; mulheres, homens, crianças, adolescentes se acotovelam esperando a vez de receber o seu quinhão do bolo estatal.

Por causa do Bolsa Família muitas pessoas simplesmente deixaram de trabalhar. Os próprios moradores afirmam ser complicado encontrar empregada doméstica ou homens disponíveis para fazer pequenos serviços de reparos e capina. As professoras estão desanimadas, os alunos vão às escolas públicas sem qualquer interesse, ao contrário, vão para fazer algazarra, pois são obrigados pelos pais que não querem perder o benefício. A exigência é apenas a presença e não a qualidade do aprendizado.

Então, a culpa é do benefício dado pelo governo federal na tentativa de atender aos mais necessitados? Não, não é do benefício e sim de como o beneficio está sendo distribuído: indiscriminadamente e sem um acompanhamento, sem instrução para o povo que apenas o recebe sem aprender qualquer ofício. O povo não precisa de esmolas e sim de educação. Claro que o povo não tem consciência disso, se lhe fosse dado, opção pediria para ficar como está.

Sem contar as fraudes, ou seja, muitos assistidos que não são necessitados. Muitos dirão: ah, mas o governo tem que contar com a honestidade das pessoas, pois ele não tem olhos para estar em todos os lugares e garantir que apenas os necessitados recebam o auxílio! Honestidade?! Palavra que perdeu o seu significado há muito tempo em nosso país. Não é demais lembrar que o dinheiro utilizado para pagar os benefícios vem do meu, do seu bolso. O fermento que alimenta e faz crescer o Estado são os nossos impostos.

Mas o que tem a ver o Germinal, o Bolsa Família, a miséria e a alienação na qual vive o povo do Vale do Jequitinhonha?

O que mais choca ao ler Germinal é a miséria na qual vivem as pessoas. A degradação humana diante da fome, da humilhação e a impotência dos mineiros diante da exploração impiedosa dos proprietários das minas. Eles não têm voz. O que nos choca, no Brasil, é a miséria, a fome, a pobreza. Nosso povo não tem voz! E, quando tem, não há ouvidos dispostos a ouvi-la.

A faculdade onde leciono está organizando um Seminário Educacional onde serão discutidos e apresentados diversos aspectos do Vale do Jequitinhonha. Na busca de argumentos para as discussões no Seminário visitei com minhas alunas do curso de Serviço Social duas famílias assistidas pelo Bolsa Família. E foi no meio daquela miséria que lembrei do livro Germinal. Não pela miséria em si, tão conhecida e aclamada pela mídia, mas pela nossa hipocrisia diante dela. Somos hipócritas! Eu, você, todo mundo. Salvo algumas vozes perdidas, alguns ouvidos cansados. Somos todos hipócritas na pele de solidários condoídos. Hipócritas com discursos inflamados, sem ação. Hipócritas ao apregoar o bem, ao apontar o dedo, ao nos sensibilizarmos diante da pobreza.

Em determinado momento do livro, um grupo de mulheres “solidárias” visita a Vila onde moravam os operários das minas, com suas famílias. Não há móveis nas paupérrimas casas, não há comida suficiente para todos, não há agasalho, não há lenha para aquecer do terrível inverno francês. O grupo, composto pelas esposas dos industriais proprietários das minas de carvão, faz parte de uma associação beneficente, que tem como objetivo assistir aos carentes. Elas chegam trajando roupas de luxo, do alto dos seus saltos, guarnecidas de agasalho e perfumes, destoando completamente da pobreza daqueles casebres, elas chegam para “comprovar” a miséria. Tão pobres e tão limpinhos! Coitadinhos! Quando elas vão embora, eles continuam com fome, frio e doentes. Elas satisfeitas por ter ido oferecer migalhas do seu tempo e palavras de solidariedade.

O escritor descreve o olhar de uma destas visitantes, na seguinte passagem:

Já a senhora Hennebeau estava amolada; contente, ao princípio de se distrair com aquele papel de quem anda a mostrar bichos no tédio do seu exílio, repugnava-lhe agora aquele cheiro insípido de miséria, apesar do asseio das casas escolhidas em que se enfiava. Aliás, não fazia mais do que repetir frases ouvidas daqui e dali, sem nunca dar maior importância àquele povo de operários que suava e sofria junto dela” (ZOLA: 1956, p. 95).

É essa passagem do livro que me vem à mente quando estive dentro das casas daquelas duas famílias. Como aquelas mulheres, procuramos uma favela, um bairro pobre para o banquete das nossas perguntas. Ali, saciaríamos os nossos desejos e encontraríamos todas as respostas que estávamos procurando. Ali, comprovaríamos a ineficiência do benefício concedido pelo governo. Hipócritas, como as mulheres de Germinal, com nossos tênis bonitos, nossas máquinas fotográficas modernas – não, não poderíamos deixar de documentar a miséria, nossos pen-drive a postos para gravar aqueles gemidos.

Se encontramos respostas às nossas perguntas? Sim, todas! O banquete foi farto para o deleite da nossa hipocrisia. Nos dois casos fomos bem recebidas, da mesma forma que aquelas mulheres de Germinal foram. Fomos aclamadas com sorrisos amáveis e respostas abundantes.

A primeira família, uma senhora, 28 anos, 5 filhos e mais um no ventre, uma menina que se chamará Maria Luiza. O pai dos seus 5 filhos ela mandou embora, pois ele bebia e a espancava e aos meninos. O pai da menina na barriga, também foi embora, quando soube que ela estava grávida. A senhora tem uma filha, de 3 anos, internada há 06 dias no hospital local com bronquite-asmática. Fato que ela conta como se comentasse algo natural e corriqueiro. Como ela sobrevive? Com R$ 95,00 que recebe por mês do bolsa família. Há alguma outra fonte de renda? Não, não há. Ela recebe ajuda da Diocese local, que oferece leite e “misturas” nutricionais. Esses benefícios são oferecidos às famílias carentes com filhos até 5 anos de idade. A escola onde os dois filhos maiores estudam (um de 6 e outro de 10 anos), oferece também auxílio, doando roupas e sapatos. Quando pergunto se ela é feliz, ela diz que sim. Não há revolta em suas palavras, ao contrário, um sorriso ilumina o pequeno cômodo, feito de lona e coberto de sapé, onde ela vive com os filhos. Analfabeta, não sabe nem escrever o seu nome, a mulher diz que seu sonho era ser professora.... Como uma leoa, ela nos conta que mandou o marido embora por causa dos filhos que eram espancados. Pelos filhos afirma fazer qualquer coisa. Não conhece nenhuma outra cidade mais distante da sua. Não passeia, não tem diversão, nem mesmo de televisão, pois não há luz e nem água encanada. - A senhora acha a vida boa ou ruim? Eu pergunto. “– A vida não é muito ruim não, ela diz e sorri. Tá bom até demais, porque eu gosto dos meus filhos perto de mim”. Se pudesse mudar alguma coisa, o que a senhora mudaria? Instigo novamente. “– Eu queria que mudasse mesmo era só a minha casa, o meu terreno, para poder ver se mudava mais um pouco, para ficar melhor um pouco e eu poder cuidar dos meus filhos melhor. Eu cuido deles bem, mas queria cuidar melhor ainda.” Ela diz novamente com um sorriso franco. “Dou a minha vida pelos meus filhos, por eles vou a qualquer canto procurar ajuda.”

A segunda família também é liderada por uma mulher. Ela, analfabeta, 43 anos e semi-paralítica. Suas pernas estão sem movimento, mas os médicos não sabem dizer o motivo. Ela tem dois filhos, um de 18 anos (segundo os moradores do local é bandido, envolvido em assaltos e tráfico de drogas) e uma menina de 6 anos, filhos de pais diferentes, os homens foram mandados embora pelo mesmo motivo da outra família: espancamento. Única renda mensal: R$ 65,00 do bolsa família. Ela não recebe mais leite da Diocese e nem as misturas, pois a filha completou 6 anos. Neste barraco, de um cômodo, tem água e luz. Com os $ 65,00 ela tem que pagar as contas e fazer a despesa. Ela disse que a menina está precisando de um chinelo, então, vendeu uma galinha que criava solta, para comprar. Antes da doença nas pernas e na coluna, que ela acredita ter sido causada pelos constantes espancamentos do seu último companheiro, ela lavava e passava roupa para algumas famílias, dinheiro com o qual sustentava a casa. Agora, imobilizada e um filho marginalizado, resta-lhe o auxílio oferecido pelo governo. No único cômodo onde moram, há apenas uma cama. Perguntei onde dormia o rapaz, pois deduzi que na cama dormiriam a mulher e a menina, ela respondeu que ele nunca teve cama e que dormia sempre num colchão colocado no chão. Ao ser perguntada o que acha da vida, ela diz que é boa, e também sorri.

Saímos de lá amoladas como a Sra. Hennebeau ficou. Não pelo incômodo causado pela miséria, mas pela nossa hipocrisia diante dela. Hipócritas armadas com fotografias e vozes gravadas servindo de comprovação de que o sistema atual não está dando certo. Senti vontade de chorar, na esperança da dor e da revolta que estou sentindo diminuirem, mas sei que lágrimas não resolverão.