5 de fev. de 2010

Assentamento no Piauí simboliza limites do combate à escravidão

Libertados do trabalho escravo que conseguiram um pedaço de terra em Monsenhor Gil (PI) ainda não receberam créditos básicos para a fixação definitiva na área. "O assentamento só existe no nome", conta representante. Por Maurício Hashizume.
Fonte: Agência de Notícias Repórter Brasil


O testemunho do trabalhador rural Francisco José dos Santos Oliveira serve de referência do quanto ainda falta para que o país se veja livre do trabalho escravo. "Chiquinho", como é mais conhecido, está à frente da Associação dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Prevenção do Trabalho Escravo, que foi estruturada nos últimos cinco anos com ajuda da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e inclui pessoas que já foram vítimas da escravidão contemporânea. Depois de muita cobrança e paciência, as cerca de 40 famílias que fazem parte do grupo conseguiram um pedaço de terra no Assentamento Nova Conquista, criado em março do ano passado em Monsenhor Gil (PI), município a cerca de 60 km de Teresina (PI).

Com a conquista, eles viram se abrir a "porta de saída" das condições de pobreza e vulnerabilidade enfrentadas pelas potenciais vítimas do trabalho escravo. Infelizmente, porém, não conseguiram cruzá-la. "As coisas não melhoraram muito. Só a terra não basta", relata Chiquinho. Quando chegaram à área de 2,2 mil hectares, descobriram que um invasor privado já tinha se apossado de quase metade (mais de 900 hectares) com uma cerca. E o mais grave: até agora, os assentados ainda não receberam nenhum crédito de apoio para a instalação efetiva das famílias no local.

Os beneficiados sequer fixaram residência na terra desapropriada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). "O assentamento só existe no nome", conta o presidente da associação. Por ora, os trabalhadores se desdobram carregando tinas de água nas costas ladeira acima e plantando gêneros alimentícios na medida do possível. Paralelamente, organizam bingos para que as lideranças possam ir a Teresina em busca de financiamento público básico. De quebra, ainda sofrem ameaças indiretas de quem não vê com bons olhos o (incipiente) projeto de reforma agrária.

De acordo com Chiquinho, pelo menos dois chefes de família já abandonaram a iniciativa para voltar ao corte da cana-de-açúcar. Um dos casos mais efetivos de superação de pessoas sob risco de aliciamento para o trabalho escravo continua, portanto, como promessa. Os trabalhadores rurais, salienta o líder comunitário, não se submetem ao risco da migração para empreitadas temporárias por vontade própria. "As condições de vida são muito precárias. Temos que sustentar as nossas famílias. É arriscado, mas precisamos fazer algo", continua.

A história de Chiquinho e de seus companheiros simboliza as contradições enfatizadas por Xavier Plassat, coordenador da Campanha Nacional de Combate ao Trabalho Escravo da CPT. Ao mesmo tempo em que intensifica e estende as fiscalizações repressivas contra o trabalho escravo, o governo federal não promoveu a democratização da terra que se esperava e ainda mantém uma relação estreita com setores conservadores do agronegócio envolvidos em flagrantes de escravidão. As denúncias encaminhadas e as libertações registradas ano após ano pela CPT são sinais evidentes de que, a despeito da série de esforços de segmentos da sociedade civil e do poder público, o problema perdura.

A reforma agrária e a mudança do atual modelo de desenvolvimento - que, no meio rural brasileiro, acaba resultando em graves impactos ambientais e sociais - também foram citados como meios concretos para a eliminação do trabalho escravo por Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil.

Chiquinho, Xavier e Leonardo fizeram parte da mesa que fez o balanço social na oficina "Trabalho escravo: o quanto já caminhamos e o que falta a fazer?", ocorrida quarta-feira (27), como parte da programação oficial da 10ª edição do Fórum Social Mundial 2010, em Porto Alegre (RS).

Política

O "termômetro" do Parlamento, abordado ao longo do painel sobre o balanço político e jurídico dos esforços contra o crime, também não tem caminhado no sentido da erradicação. "Apesar de algumas sinalizações e dos esforços de alguns setores para melhorar a legislação com vistas ao combate efetivo do trabalho escravo, o Congresso ainda está devendo muito", sustenta o senador José Nery (PSol-PA), da Subcomissão Permanente de Combate ao Trabalho Escravo e Acompanhamento da Regularização Fundiária da Amazônia Legal, ligada à Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH).

"Combater o trabalho escravo e defender o trabalho decente deveria ser um compromisso de todos", acrescenta José Nery, que anunciou o lançamento de uma frente parlamentar dedicada ao tema que reunirá vários deputados e senadores de diversos estados e partidos. O principal desafio colocado aos congressistas é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 438/2001, que propõe o confisco de terras de quem explorar mão de obra escrava. O senador lembra que a tarefa não será fácil, pois o Congresso está repleto de representantes dos grandes produtores rurais. Há inclusive casos de deputados - como Inocêncio Oliveira (PR-PE) - e senadores - como João Ribeiro (PR-TO) - que são proprietários rurais e foram envolvidos diretamente em episódios de trabalho escravo.

José Nery pinçou um parecer elaborado pelo senador Demóstenes Torres (DEM-GO) para demonstrar como é recorrente entre seus pares a alegação de que os flagrantes de trabalho escravo no Brasil são eivados de "subjetividade". No relatório sobre o Projeto de Lei (PL) 9/2004 de Marcelo Crivella (PR-RJ), que prevê a inclusão do Artigo 149 do Código Penal (Redução à condição análoga à de escravo) no rol de crimes hediondos, Demóstenes atribui "acentuada subjetividade" à normatização da matéria e sustenta que não são raros "os casos onde (sic) descumprimento de normas administrativas de segurança e saúde do trabalho ou mesmo de dispositivos da CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas] têm sido considerados trabalho forçado".

"O argumento da subjetividade continua sendo utilizado como um impedimento para a aprovação das leis", declara José Nery. Foi o que ocorreu no caso Pagrisa, em que senadores capitaneados pela ruralista Kátia Abreu (DEM-TO) chegaram a montar uma comissão especial externa para contestar a fiscalização que libertou 1.064 trabalhadores de usina e fazenda em Ulianópolis (PA). "Impressiona o grau de tolerância de alguns parlamentares. Deveria ser zero", adiciona o senador que representa o Estado do Pará.

A PEC 438/2001 permanece estagnada, à espera de votação em segundo turno, no Plenário da Câmara dos Deputados. A votação em primeiro turno foi realizada em agosto de 2004, ainda sob efeito do clamor nacional resultante da Chacina de Unaí, episódio em que três auditores fiscais do trabalho e um motorista foram assassinados enquanto faziam inspeções em Minas Gerais.

Para tentar destravar a proposta, representantes da Frente Nacional Contra o Trabalho Escravo e pela Aprovação da PEC 438 - que já reuniu mais de 165 mil adesões por meio de abaixo-assinado -, da Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e da aguardada frente parlamentar planejam intensificar as articulações junto aos líderes partidários e promover a entrega das assinaturas colhidas junto à sociedade no dia 13 de maio, quando a Abolição da Escravatura completará 122 anos.

A aprovação da PEC, classifica José Nery, "corresponde à assinatura de uma segunda Lei Áurea". A articulação entre governos, partidos, entidades públicas e privadas e sociedade civil, em geral, é crucial, na visão dele, para que tal propósito seja atingido. De imediato, um comitê de especialistas deve ser convocado para analisar o andamento das proposições legislativas relacionadas ao combate à escravidão. O parlamentar segue nutrindo a esperança de que a expropriação dos bens de escravagistas possa ser aprovada ainda neste primeiro semestre de 2010.

Justiça

No âmbito do Executivo, o ministro chefe da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR), Paulo Vanucchi, reitera a intenção de realizar um encontro organizado pela Conatrae - com a possível presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de outras figuras emblemáticas como os chefes maiores do Poder Judiciário e do Poder Legislativo - nas proximidades de 13 de maio de 2010.

Apesar do trabalho dos que se dedicam ao combate à escravidão, o ministro salienta que ainda existem setores que ousam atacar a própria existência do problema no país - reconhecimento esse que já foi feito pelo próprio governo brasileiro perante a comunidade internacional. Paulo Vannuchi faz questão de destacar que esse esforço teve início no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e que prosseguiu com Lula.

A lógica da escravidão, para Paulo Vannuchi, é "inaceitável" e não está amparada no "subjetivismo", pois os critérios utilizados pelo grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) são muito claros. Para tirar a prova, o ministro arrisca até um convite aos que "duvidam" das condições degradantes a participar de uma operação de resgate.

O representante do Poder Executivo enxerga raízes históricas que ajudam a explicar a continuidade do trabalho escravo e a polêmica que acompanhou a proposta de criação da Comissão Nacional da Verdade, que consta do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3) e tem como objetivo "examinar as violações de direitos humanos praticadas no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro de 1988 (...) a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional". A impunidade em relação aos abusos (seja diante das ditaduras do passado, seja diante da sucessão de violências contra indígenas nativos e negros que foram vítimas do tráfico de pessoas) dificulta a distinção definitiva entre a subordinação que tolhe o indivíduo e o trabalho livre, pleno de direitos.

Esta distorção acobertada pela impunidade, pela naturalização das desigualdades e injustiças sociais e pela desvalorização da força de trabalho, defende o ministro, precisa acabar. Para ele, não se trata de "revanche". "O que se quer jogar é luz. Conhecer para que não aconteça nunca mais", completa. "Não há democracia com trabalho escravo".

A associação entre o déficit de democracia e a realidade do trabalho escravo também faz parte das observações do juiz Marcus Barberino, do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15), que participou do balanço político e jurídico sobre o tema no FSM 2010. Na concepção dele, prevalece entre os juízes a tendência de priorização da liberdade em comparação com a igualdade, outro pilar central para a consolidação do ambiente democrático. Por causa dessa ênfase, o Judiciário - que carrega o fardo de "guardião da promessa civilizatória" - ainda enxerga a escravidão contemporânea como uma infração "meio" que tem como único "fim" o crime de cerceamento da "liberdade de ir e vir". Ocorre que o trabalho escravo, explica o juiz, é um crime per se, definido pelas condições expressas na legislação penal.

O trabalho escravo contemporâneo, observa Marcus, não se restringe às atividades rudimentares exercidas sob coerção de capangas armados nos "rincões do país", mas "perpassa toda a cadeia produtiva". A modalidade criminosa de exploração, complementa, é "central para a organização do próprio mercado de trabalho". Ele salienta que as ações administrativas no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Ministério Público do Trabalho (MPT) têm andamento e conseqüências, e que as punições na esfera criminal também precisam ganhar maior repercussão. "Não existe problema na sociedade se ele não é visível".

Nas oficinas temáticas voltadas aos operadores do Direito (que vem sendo realizadas em diversas capitais do país desde o ano passado e tem o apoio da SEDH/PR e dos Tribunais de Justiça de diferentes Estado), Marcus tem notado a existência de uma "imagem distorcida" da escravidão contemporânea e a falta de preparo e treinamento "para cuidar de um problema dessa dimensão". Ele defende uma compreensão mais ampla dos casos, com vistas não apenas na punição dos "culpados", mas também na busca de ações preventivas e promocionais do meio ambiente do trabalho de maior alcance, relacionadas ao conjunto do segmento econômico.

A aprovação da emenda que determina a expropriação da terra dos proprietários rurais escravagistas contribui para esse conceito mais ampliado de responsabilidade, sublinha o juiz do TRT-15. "Trata-se de um estímulo econômico para o cumprimento da legislação trabalhista", comenta. Nesse sentido, a preocupação crescente com as questões ambientais corrobora para o envolvimento de uma gama maior de agentes.

As perspectivas do "fim do trabalho" e do enquadramento da geração de empregos como "ato de caridade" também dificultam o combate ao trabalho escravo. "Precisamos reverter isso", coloca Marcus. Tradicionalmente ligada ao sonho por dias mais felizes, a migração ganha ares de desalento no caso dos aliciados para a escravidão. Nesses casos, segundo o juiz, inexistem estruturas capazes de fazer com que a pessoas tenham dignidade sem se submeter a essas incertezas quanto à sobrevivência.

Pressão

Representantes do MPT e do MTE também participaram da oficina sobre trabalho escravo no FSM 2010. Sebastião Caixeta, da Coordenação Nacional do Combate ao Trabalho Escravo (Conaete), lembra que, no início dos esforços, a participação dos procuradores do trabalho se dava mais na parte repressiva - na participação dos grupos móveis, na negociação de acordos e na autoria de ações civis públicas. Com o tempo, o MPT passou a atuar não apenas de forma reativa aos casos flagrados, mas também no sentido da verificação de cadeias produtivas como um todo, da prevenção do crime e da reinserção de trabalhadores egressos da escravidão.

Como resposta a essas demandas, o MPT montou um grupo especial para a promoção do trabalho decente no setor sucroalcooleiro, pretende coletar dados sobre aliciamento nos municípios pobres com maiores índices de migração de trabalhadores para coibir a ação dos chamados "gatos" (recrutadores terceirizados) e reforçar a contratação por meios regulares, e está dando suporte aos projetos de capacitação técnica de libertados no Mato Grosso. Recentemente, a Conaete finalizou ainda um marco jurídico institucional relativo à definição do trabalho escravo, baseado em experiências práticas, como resposta à acusação de "subjetividade" das inspeções.

A conexão dos fazendeiros flagrados com o poder político e econômico está por trás dos protestos contra a aplicação do Art. 149 do Código Penal, conforme Marcelo Campos, da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) do MTE. Ele fez um balanço positivo dos esforços de combate ao trabalho escravo desde 1995, quando foram realizadas 11 operações do grupo móvel, para 2008, ano em que houve 149. Duas edições (2003 e 2008) do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE) já foram elaboradas, com metas atribuídas a diferentes atores comprometidos com o combate ao crime.

A "lista suja" do trabalho escravo, divulgada desde 2004, se converteu em instrumento efetivo para inibir incentivos públicos federais e para referendar o corte de relações comerciais por parte das empresas e associações signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Além disso, já houve pelo menos 36 condenações - primeiro um pacote de 27 condenações e depois mais 9, todas de Carlos Henrique Borlido Haddad, da Vara Federal de Marabá (PA). "Seria difícil imaginar que avançaríamos tanto", declara.

"É uma vergonha saber que ainda existe trabalho escravo, mas é um orgulho ver o que já fizemos", adiciona Marcelo, do MTE. O reconhecimento de erros e a comemoração dos avanços são importantes para fortalecer a luta e afastar o perigo de desmonte do que já foi conquistado, analisa. No Brasil, adiciona, o direito à propriedade vem antes de outros direitos: as pessoas se mostram mais indignadas com o roubo de uma carteira do que com o abandono de pessoas que sofrem ao relento nas ruas da cidade, ou seja, os direitos humanos são "rebaixados" e os próprios empregados recorrentemente não se empenham em valorizar o trabalho.

Em apoio às palavras de Marcelo, Xavier Plassat reconhece iniciativas importantes tanto em nível federal como nas esferas estaduais. "Mas às vezes a gente se sente um pouco só", desabafa. O representante da CPT aponta a participação de movimentos sociais e de entidades organizadas como fundamental ao combate ao trabalho escravo, pois se trata de um tema que exige transversalidade e pode ser incorporada como bandeira comum.

Nesse contexto, as sanções econômicas decorrentes do Pacto Nacional não necessariamente resolvem o problema, mas acabam sendo uma reação de mercado, complementa Leonardo Sakamoto, da Repórter Brasil. Complementarmente com a cadeia produtiva, as pessoas dispostas a colaborar com a causa podem se mobilizar para a mudança no padrão de consumo, com escolhas que possam causar menos impactos sociais e ambientais. "A compra é um ato político", diz. A escolha dos parlamentares que farão parte da próxima legislatura do Congresso Nacional também pode ter influência direta no combate à escravidão, adverte Leonardo, pois alguns dos políticos, especialmente os ruralistas, atuam abertamente contra a aprovação de matérias cruciais para a punição exemplar de infratores como a PEC 438/2001.

Coordenadora das mesas da oficina, Laís Abramo, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), confirma que a condição do Brasil de vanguarda internacional no enfrentamento à escravidão. "A diversidade de atores e de pontos de vista demonstra a riqueza da experiência brasileira", afirma. "Mas isso não significa que devemos nos dar por satisfeitos", pondera, sem esquecer de convocar agentes da sociedade civil a manter a tensão e a pressão constantes. "Quando se trata de trabalho escravo, não existem objetivos parciais, intermediários, que sejam satisfatórios. A meta é uma só: a erradicação".